BELLE

BELLE

Belle é o oitavo longa do diretor Mamoru Hosoda (Crianças Lobo, A Garota que Conquistou o Tempo e Mirai). Seu novo filme estreou no 74º Festival de Cannes e foi aplaudido de pé por 14 minutos. Posso adiantar que o filme faz jus a toda essa manifestação. De forma muito inteligente o diretor constrói, nos dois universos apresentados – o mundo real e o virtual –, uma narrativa explanatória ao mesmo tempo que permite a existência de algumas lacunas, para só ao final, então, apresentar ao espectador todas as nuances daquela história.

Com a preocupação de não deixar o público sem saber o mínimo sobre aquela história, Hosoda separa os primeiros minutos para uma apresentação daquele ambiente virtual. A concepção é como algo flutuante e com aspectos tecnológicos em conjunto com os mais diferentes seres, que possuem a existência possível, somente, naquele “jogo”. Esse mundo virtual se chama U. Através de um aplicativo no computador ou no celular e um fone no ouvido, pronto, os personagens estão logados nesta outra realidade, nesta outra versão deles.

Evidente que o longa brinca com a eterna insatisfação que temos com o mundo real. Arrisco dizer que todos nós já desejamos algo que não poderíamos ter. Essa é a essência de U. Um lugar para ser quem quiser e fazer o que bem entender. Interessante notar como que uma vez logado neste universo, há uma espécie de vergonha em mostrar o seu verdadeiro eu. E Hosoda mostra que esse “desmascarar” é uma verdadeira punição para aquelas pessoas e seus respectivos avatares. Considerando uma sociedade que se alimenta constantemente das redes sociais e que vive em função de personagens criados para conseguir mais visualizações e patrocínios, não me parece que esta primeira crítica do diretor seja, de forma alguma, infundada.

Mas nem todos estão ali com esse intuito – vender algo que não são. O caso de Suzu/Bell é justamente o oposto. Ainda que haja um desejo no seu aspecto físico, muito por conta de uma adoração que ela tem por outra personagem, é neste universo que ela, enfim, consegue cantar – algo que já não fazia a algum tempo e era algo que compartilhava com sua mãe. E aqui vem a segunda crítica de Hosoda: a rapidez com que se destila o ódio pelo diferente ou por aquilo que ainda é desconhecido, que não está na moda. Mas o diretor nos apresenta a uma volatilidade muito próxima do real. Afinal o público presente nas redes sociais vive mudando de opinião com base no influencer da vez. Este é o nosso mundo.

Muito embora o diretor faça essa crítica ao comportamento do interesse em mundos virtuais, da volatilidade de opiniões e de toda a violência permitida nesse meio, ele também consegue transmitir o uso eficiente dessas tecnologias que não vão deixar de existir. Bell, depois de todo hate que recebeu, passa a ser amada por aquela comunidade e logo se torna Belle (Bela em francês). Nesse ponto já conseguimos, também, fazer relações com a animação da Disney, A Bela e a Fera, uma vez que logo após seremos apresentados ao dragão, que é constantemente chamado de monstro. Desse ponto em diante é impossível não notarmos as muitas semelhanças (castelo, gárgulas, rosas). Mas uma coisa que preciso falar é que, mesmo eu não sendo um consumidor ávido por animes – só assisti a três: Your Name, O Tumulo dos Vagalumes e Belle –, é inegável o poder de emocionar, de se conectar e, também, as incontáveis possibilidades de estabelecer narrativas dentro de narrativas. Há diversos questionamentos sobre os propósitos de um espaço virtual com U. Há uma clara relação com A Bela e a Fera, mas há também uma ressignificação em tudo o que estamos acostumados em um filme como esse.

Suzu possui um trauma em sua vida – a perda de sua mãe – que interfere em absolutamente tudo em seu dia a dia. Não troca mais do que duas palavras com seu pai, não consegue mais cantar e se torna cada vez mais calada e reclusa. U se torna um espaço para que ela possa voltar a ser quem era, muito embora, sua mãe continue sendo uma ausência muito sofrida. Mas ela encontra um sentido para sua vida, ali, neste “jogo” e, a partir de uma primeira interação com o dragão, percebe alguém que sofre como ela. E o que Hosoda faz com este personagem é brilhante. Primeiro que assim como dentro do filme, nós, espectadores, ficamos ansiosos por saber quem está por trás daquele avatar. Mas não queremos que ele seja descoberto de maneira tirana, feita pelos defensores da família e dos bons costumes. Queremos que seja algo natural e que parta dele. Ao mesmo tempo o diretor dá significados para algumas de suas características que nos deixam impressionados pela sensibilidade e perspicácia. Quando notamos, já estamos boquiabertos.

Essa dualidade trabalhada por Hosoda entre mundo real e mundo virtual, se dá, também, através dos traços empregados no filme. O mundo real possui mais textura, muito embora os personagens pareçam sempre chapados. No mundo virtual há muito brilho, muita luz e, evidentemente, de forma muito lúdica, nada ali parece ter qualquer referência com o que conhecemos do nosso mundo.

Belle não é um musical, mas sempre que sua personagem canta, o arrepio vem de forma natural. O poder da música, aqui, traz toda a conexão que a personagem Suzu tinha com sua mãe. É através da melodia que ela consegue exprimir toda sua dor e todos os seus sentimentos. É através da canção que ela se conecta com todos que estão ali, naquele universo e, também, fora dele.

Muitos filmes já propuseram a fuga da realidade através das redes sociais ou através de avatares existentes em um mundo virtual. A série super elogiada Black Mirror fez isso em muitos de seus episódios ao longo das suas 5 temporadas. Mas creio que nenhum deu tanto significado aos indivíduos como vemos em Belle. Claro que neste longa, nem todos os personagens são tão desenvolvidos quanto Suzu/Belle e o dragão. E nem precisa. A história que envolve ambos é forte demais e qualquer outra coisa seria apenas um desvio de atenção negativo para o filme.


Filme: Ryū to Sobakasu no Hime (Belle)
Elenco: Kaho Nakamura, Ryô Narita, Shôta Sometani, Tina Tamashiro, Lilas Ikuta, Takeru Satoh, Kôji Yakusho, Ken Ishiguro, Toshiyuki Morikawa, Sumi Shimamoto
Direção: Mamoru Hosoda
Roteiro: Mamoru Hosoda
Produção: Japão
Ano: 2021
Gênero: Animação, Aventura, Drama
Sinopse: Suzu é uma estudante de ensino médio de 17 anos que mora em uma aldeia rural com o pai. Por anos, ela foi apenas uma sombra de si mesma. Um dia, ela entra em “U”, um mundo virtual de 5 bilhões de membros na internet. Lá, ela não é mais Suzu, mas Belle, uma cantora mundialmente famosa. Ela logo se encontra com uma criatura misteriosa. Juntos, eles embarcam em uma jornada de aventuras, desafios e amor, em busca de tornarem-se quem realmente são.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Paris Filmes
Streaming: Não disponível
Nota: 8,1

*Estréia dia 27/01/2022 nos cinemas*

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *