BLONDE

BLONDE

O novo épico saudosista da Netflix aposta na exploração do mito de Marilyn Monroe, mas acaba, no processo, explorando a própria imagem da atriz e o bom senso do espectador.

Rodeado de polêmicas, ‘Blonde’ (2022) é uma ficcionalização da vida de Norma Jeane (verdadeiro nome de Marilyn) que, assim como os demais filmes do diretor, não se assume como biografia. A história é baseada no livro homônimo de Joyce Carol Oates e se utiliza de figuras e acontecimentos reais para montar uma narrativa fictícia, no intuito de desmascarar a verdade oculta através dos mitos ofuscantes da velha Hollywood. Da mesma forma, as cenas e os planos do filme são moldados pela reprodução de imagens icônicas, igualmente estáticas, glamourosas e super produzidas, consolidando o foco no visual e estético, não no factual.

O interesse do diretor Andrew Dominik em Marilyn como símbolo, e não a figura real, vem de uma tradição em sua carreira. Desde seu filme de estreia ‘Chopper – Memórias de um criminoso’ (Chopper, 2000), ao renomado ‘O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford’ (The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, 2007) e seu mais recente ‘O homem da Máfia’ ( Killing Them Softly, 2012), seus longas de ficção pegam emprestado nomes e detalhes reais para fantasiar uma história que chega ao cerne da questão de seus personagens. Nesses movimentos pendulares entre mito e realidade, Dominik alcança uma verdade mais profunda sobre seus protagonistas míticos, nas visões construídas, confabuladas ou midiatizadas que os personificam no imaginário popular. Frequentemente desmistificando a farsa do sonho americano, prevalece em seus filmes o protagonismo de notórios criminosos e um comentário maior sobre a masculinidade. Sua nova obra, no entanto, foca pela primeira vez em uma mulher e uma vítima, ao invés de algoz.

A história de Marilyn Monroe vem sendo objeto de interesse nos últimos tempos a partir de um recente ressurgimento da tendência de revisão da era de ouro da indústria cinematográfica norte-americana. Os seus poderes de controle e hegemonia do pensamento geral, a forma como se relaciona com os interesses globais do estado capitalista, e, principalmente, as inúmeras histórias sórdidas e ocultadas sobre o tratamento recebido por seus atores e funcionários são temas que vêm sendo explorados há alguns anos. Marilyn, ícone, sex symbol e estrela máxima de sua época, é o exemplo perfeito de que mesmo os seus principais expoentes não estavam seguros aos abusos cometidos nos bastidores do glamour de Hollywood, principal e majoritariamente as mulheres. É uma história delicada, repleta de segredos e conexões com poderes maiores, cujas marcas de sofrimento traçam desde a infância de Norma Jeane. No filme de Dominik, tudo isso é retratado e até estendido além do que sequer aconteceu, na intenção de usar a atriz como símbolo de uma opressão generalizada. Ele se esquece, porém, do ser humano real que viveu e sofreu, mas que também foi muito além do puro sofrimento.

As críticas que o filme recebeu foram, em maioria, no sentido da caracterização da protagonista como um ser unidimensional e vitimizado, cuja única característica é marcada por suas dores e traumas. Raros são os momentos em que Marilyn expressa seus próprios desejos, enquanto seu penar é exposto incansavelmente desde o início do filme, que relata uma infância traumática de abandono parental e tece a partir daí a repetição prolongada de violências e relações abusivas. O espectador tem pouquíssimos respiros em Blonde, que não se preocupa com o ritmo e a intensidade com que cadencia sequências pesadas e sem pudor. A passagem da infância à vida adulta e carreira logo no começo é um grande exemplo da visão pessimista impressa no longa de forma tão abrupta e desbalanceada. Presenciamos nestes dois instantes a violência que permeia a vida da protagonista mesmo durante o seu sucesso. Não temos a menor chance de contemplar seu êxito, logo que, é apenas pano de fundo para o que há de ruim. Além disso, a intenção em mostrar o abuso de forma tão crua é mais um aspecto que pode tornar a experiência nauseante e sobrecarregar o espectador. A proposta de denúncia da dominação masculina, do machismo e da objetificação vão por água abaixo quando se opta pela pura exposição do mal sem qualquer conclusão coerente, reduzindo, no processo, uma personagem que, apesar de tudo, representa uma das mais notáveis personalidades femininas do século XX.

Os méritos do filme, infelizmente, acabam ofuscados pela apresentação insensível e contraproducente de seus temas. A atuação de Ana de Armas, por exemplo, se torna refém da roteirização de Marilyn como personagem de uma nota só e da objetificação que a obra a submete, ironicamente em paralelo a denúncias de objetificação de atrizes. Nesse sentido, o status atual da atriz protagonista coincide com o de sua personagem, mais uma vez realizando um papel que, por mais que demande grande carga dramática, requer dela o corpo objetificado e quase sempre despido. A fotografia, inegavelmente impecável em alguns momentos, empalidece em meio a inconsistência visual da obra que constantemente abusa de recursos estéticos e efeitos visuais. 

A proposta de Dominik é a de reproduzir minuciosamente fotografias ou trechos de filmes icônicos e desenvolver os acontecimentos da narrativa ao redor dessas cenas. Marilyn, até em seus momentos mais íntimos, está sempre caracterizada como ícone, o mesmo cabelo e maquiagem dos filmes. E se estabelece desde sempre uma atmosfera onírica cheia de elementos fantásticos que representam essa ideia de viver um sonho e, ao mesmo tempo, um pesadelo, no qual a protagonista, entorpecida e manipulada, passeia sem se dar conta de onde ou com quem está. Para isso, o diretor emprega deliberadamente efeitos especiais, brilhos ofuscantes, borrões e distorções, alterna em diversos momentos-chave entre a cor e o preto e branco, e muda o formato de tela de uma cena para outra, às vezes, durante a mesma cena. Tudo isso, apesar de criativo, confunde e dispersa o público. O ritmo apressado e violento junto ao exagero e inconstância das imagens tornam a experiência cansativa e impedem qualquer conexão emocional com o material, se não o sentimento de repulsa.

Todos esses aspectos problemáticos em um filme com orçamento, equipe e elenco de altíssimo nível distribuídos pela Netflix obviamente o tornaram alvo de críticas e polêmicas. Além da abordagem duvidosa, declarações do diretor em entrevistas menosprezando a importância de Marilyn Monroe e usando termos ofensivos em relação às personagens femininas do filme ‘Os homens preferem as louras’ (Gentlemen Prefer Blondes, 1953) deixam explícitas as suas visões. Assim como em seu novo longa, Dominik tenta criticar o sexismo da velha Hollywood e a objetificação de suas estrelas, mas acaba diminuindo e tornando alvo as próprias vítimas da indústria da forma mais ofensiva. No final, ele não consegue tratar sua nova personagem de forma menos grotesca que seus outros protagonistas, homens, assassinos e criminosos, que possivelmente são vistos com até mais simpatia. Com isso, fica mais compreensível como ‘Blonde’ é um filme que vem para ajudar e apenas atrapalha um debate que não começa na década de 1950 e nem termina nos tempos atuais.


Filme: Blonde
ElencoAna De Armas, Bobby Cannavale, Julianne Nicholson, Adrian Brody.
Direção: Andrew Dominik.
Roteiro: Andrew Dominik, Joyce Carol Oates.
ProduçãoEUA
Ano: 2022
Gênero: Drama.
SinopseApós uma infância traumática, Norma Jeane Mortenson (Ana de Armas) tornou-se atriz, na Hollywood dos anos 1950 e início dos anos 1960. Ela se transformou em uma figura mundialmente famosa, sob o nome artístico de Marilyn Monroe. Todavia, por trás dos holofotes da fama, a atriz vivia guerras pessoais, e suas aparições na tela contrastam fortemente com os problemas de amor, exploração, abuso de poder e dependência de drogas que ela enfrentava em sua vida privada. Blonde reimagina corajosamente a vida de um dos símbolos mais duradouros de Hollywood, de sua infância volátil como Norma Jeane, até sua ascensão ao estrelato e envolvimentos românticos, o longa se apresenta como uma especulação da vida da sex symbol, atriz e modelo. Uma história reimaginada da vida privada de Monroe, o filme é um retrato fictício da vida do ícone da década de 1950 e 60, contado através das lentes modernas da cultura das celebridades. Baseado no livro homônimo de Joyce Carol Oates.
Classificação: 18 anos.
Distribuidor: Netflix.
Streaming: Netflix.
Nota: 3,0

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