BOB CUSPE – NÓS NÃO GOSTAMOS DE GENTE

BOB CUSPE – NÓS NÃO GOSTAMOS DE GENTE

Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente é a mais nova empreitada do diretor Cesar Cabral sobre a vida e obra de um dos maiores cartunistas e chargistas do Brasil, o Angeli. Cabral dirigiu o curta de animação “Dossiê Re Bordosa” (2008) e a série em animação “Angeli – The Killer” (2017). Quatro anos se passou e Cabral traz, agora, para o cinema, um dos personagens mais icônicos dos quadrinhos brasileiros, Bob Cuspe, que é, sem dúvidas, pensado como um alter ego do próprio Angeli.

É uma pena que a ideia de quadrinhos, principalmente, nos tempos de hoje seja sempre referenciada por Marvel e DC Comics. Esse total esquecimento dos grandes nomes por trás dos grandes personagens dos quadrinhos brasileiros é decepcionante.

A década de 80, por exemplo, foi marcada por uma revista chamada Chiclete com Banana, nela havia um compilado de histórias criadas por, principalmente, Angeli, Laerte e Glauco (Los 3 Amigos). As histórias eram marcadas pela ideia de contracultura e com um viés anárquico. E foi dessa forma que a revista virou referência para uma geração, chegando à marca de mais de 100 mil exemplares vendidos.

Um dos principais personagens dessa revista e da carreira do Angeli é o Bob Cuspe, um punk vivendo em São Paulo. O personagem deu a Angeli a oportunidade de fazer e falar o que na vida real não poderia. Portanto às vezes era difícil distinguir a criatura do criador. Pensando nisso, Cabral cria um longa animado, em stop motion (processo artesanal de animar bonecos), que mistura uma espécie de “documentário” com ficção. Mostra um Angeli em crise e seus personagens a mercê desse ambiente desértico que se tornou a cabeça do autor.

O trabalho de animação é fantástico e ao todo foram 5 anos para a finalização deste filme. Os detalhes, principalmente, nos movimentos corporais das mãos e dos dedos nas cenas animadas com o Angeli, que são muito próximos de um movimento real, impressionam, e para quem assiste os bastidores, é um outro espetáculo. A minuciosidade em que é feito este trabalho deixa qualquer um de queixo caído.

Mas um dos principais desafios do diretor era a migração do personagem, originário das tiras, para o universo 3D. Além disso era preciso achar uma voz para Bob Cuspe e o que poderia ser uma tarefa difícil, com a escalação de Milhem Cortaz se provou mais simples do que o esperado. Diante desse trabalho é possível até visualizar um live action com o próprio ator interpretando Bob Cuspe, tamanha a perfeição no encaixe da sua voz para a acidez e escárnio das falas do personagem.

Bob Cuspe ganha vida neste filme para um conflito com seu criador que, costumeiramente, mata seus personagens. Se por um lado acompanhamos os pensamentos, por vezes, aparentemente desconexos do Angeli, por outro temos uma jornada do Bob Cuspe por sua sobrevivência e tentando a todo custo encontrar aquele que quer lhe dar um fim. Esses dois universos convergem em uma sintonia complexa mas que não deixa a trama confusa, a edição sob responsabilidade de Eva Randolph, que já tem eu seu currículo dezenas de documentários, chama atenção pela coesão e coerência de cena após cena.

O humor, traço forte das criações do Angeli – ainda que acompanhadas de posições sérias em relação à política –, está em todo o filme. Seja nas expressões do personagem Angeli e sua falta de paciência em dar aquela entrevista, nas figuras dos irmãos Kowalski, interpretados, unicamente, por Paulo Miklos, que chega a brincar com uma das musicas do Titãs no filme e a representação do Pop ameaçador, como algo a tomar todos os espaços, através dos Eltons Johns mutantes. Este último elemento, o conflito com o pop, pode ser alavancado para outras tantas esferas: O novo ocupando o espaço do velho, a modernidade transformando os antigos em quinquilharias, o tempo passando depressa demais e impossibilitando artistas, como o próprio Angeli, acompanhar. Mas é nesse momento que a figura de Laerte se sobrepõe como alguém que aceitou o tempo, olhou para trás e se transformou. A sua inserção na história, como alguém, de fato, presente na vida do Angeli, traz essa ideia de renovação, necessária, para ele.

Mas é através da frase “Punk is not dead” – imediatamente me fez lembrar do episódio da entrevista de Dado Dolabella no programa João Gordo (Uma versão real do Punk contra o Pop) – que o filme entrega o caminho que vai trilhar. Bob Cuspe sempre foi visto como um anti-herói e aqui se mostra como um sobrevivente em meio ao caos na mente do seu criador.

Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente, que ganhou o prêmio de melhor filme no maior festival de animação do mundo, a Mostra Contrechamp do Festival de Annecy, estreou nos cinemas no dia 11 de novembro de 2021. O filme atende a todos os públicos, para aqueles que viveram a época da revista Chiclete com Banana e, também, para quem nunca ouviu falar dos personagens do Angeli.

Essa homenagem feita por Cesar Cabral a Angeli e seus personagens nos deixa com a sensação de uma maior intimidade com aquelas histórias e cria uma curiosidade para o que vem a seguir. Personagens não faltam, a carreira de Angeli é extensa e composta de muitos personagens que dariam excelentes filmes. Parece que Cabral tem a mão certa para fazer essas transposições. Esperemos pelo próximo.


Filme: Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente
Elenco: Milhem Cortaz, Paulo Miklos, Grace Gianoukas, André Abujamra, Angeli, Laerte Coutinho, Beto Hora, Hugo Possolo, Carol Guaycuru
Direção: Cesar Cabral
Roteiro: Cesar Cabral
Produção: Brasil
Ano: 2021
Gênero: Animação
Sinopse: O velho punk Bob Cuspe tenta escapar de um deserto pós-apocalíptico que, na verdade, é um purgatório dentro da mente de seu criador, o cartunista Angeli, que passa por uma crise criativa.
Classificação: 16 anos
Streaming: Não Disponível
Nota: 7,9

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