Já imaginou ver um filme em que uma mulher acredita estar se tornando um cachorro? Nunca pensei que fosse ver algo assim. Pois é, Amy Adams fez isso – e muito bem. Em Canina, baseado em Nightbitch, escrito por Rachel Yoder, a atriz interpreta uma mãe que abandona sua carreira nas artes plásticas para se dedicar integralmente ao filho. Enquanto o marido está constantemente viajando a trabalho, ela se vê sobrecarregada com as responsabilidades da casa e da maternidade. A exaustão emocional e física acaba desencadeando uma transformação inesperada: ela começa a se enxergar como um animal, mais especificamente, um cachorro. O filme acompanha essa metamorfose tanto psicológica quanto física, que desafia as noções de identidade, maternidade e autonomia feminina.
Conforme essa transformação avança, a protagonista passa a se conectar com outras mães e a questionar o status quo do casamento e da sua própria existência. A redescoberta da arte, antes deixada de lado, ganha um novo significado, assim como sua relação com o filho e sua posição no mundo. Canina mergulha profundamente na solidão da maternidade, explorando o desgaste físico e mental, a sensação de invisibilidade e a necessidade de reafirmação pessoal. O roteiro, inteligente e bem equilibrado, evita pender completamente para o drama ou para a comédia absurda, mantendo-se em um espaço intermediário que enfatiza tanto a bizarrice da situação quanto a carga emocional da protagonista. A direção cuidadosa de Marielle Heller garante que o tom do filme permaneça coeso, sem deixar que o humor físico sobreponha a densidade do drama ou que o peso da narrativa apague os momentos de ironia e estranhamento.
A mistura de gêneros – comédia, drama e fantasia – dá a Amy Adams a oportunidade de explorar um amplo espectro de nuances interpretativas. Seu talento, já mais do que comprovado, brilha em todas as camadas da personagem. Há um humor físico brilhante, especialmente nas cenas em que ela imita hábitos caninos ao lado do filho, mas também uma entrega emocional intensa nos momentos de crise e descoberta. Suas cenas mais inquietantes, especialmente quando começa a perceber mudanças físicas, evocam uma sensação de desconforto e surpresa. A sequência em que ela percebe algo crescendo perto de seu glúteo, por exemplo, remete, sem o mesmo apelo estético, a A Substância, de Coralie Fargeat, ao sugerir uma corporalidade monstruosa que emerge das pressões impostas à mulher.
Apesar de sua premissa peculiar, “Canina” não é um filme que restringe. Muito pelo contrário: a parte fantástica, mesmo que muitas vezes sendo difícil levá-la a sério, é bem incorporada à narrativa, sem deixar margem para dúvidas quanto às suas intenções. No entanto, há momentos em que o filme parece subestimar o espectador, explicando de forma excessiva aspectos que poderiam ser mais sutis. Ainda assim, há uma sensação de que o filme hesita em abraçar completamente seu discurso, resultando em uma mistura de gêneros que, por vezes, parece não se aprofundar o suficiente em nenhum deles, mesmo que haja um equilíbrio.
O filme apresenta uma discussão clara e provocativa sobre o papel da mulher na sociedade, a exaustão materna e a animalidade reprimida dentro da civilização. No entanto, sua execução oscila entre a coragem de sua proposta e um certo receio de levá-la às últimas consequências. Canina é instigante e repleto de boas ideias, mas deixa no ar a sensação de que poderia ter ido ainda mais longe. Entretanto, Amy Adams foi uma escolha mais que certa para se aventurar nesse papel.
![]() |
Filme: Nightbitch (Canina) Elenco: Amy Adams, Scott McNairy, Arleigh Snowden, Emmett Snowden Direção: Marielle Heller Roteiro: Marielle Heller, Rachel Yoder Produção: Estados Unidos Ano: 2024 Gênero: Comédia, Drama, Terror Sinopse: Uma mulher lançada à rotina de ficar em casa criando uma criança no subúrbio lentamente abraça o poder selvagem profundamente enraizado na maternidade, conforme ela se torna cada vez mais consciente dos sinais bizarros e inegáveis de que ela pode estar se transformando em um cachorro Classificação: 16 anos Distribuidor: Searchlight Pictures Streaming: Disney Plus, MUBI Nota: 5,5 |