No início, a câmera enquadra a rua de um bairro de classe alta e o carro avança do fundo até estacionar; o veículo é velho, está com o para-lamas preso apenas de um lado e um dos personagens precisa bater a porta com força para fechá-la. São três pessoas: dois homens e uma mulher já envelhecidos, que procuram um endereço para confirmar se é o lugar certo; paralelamente, observamos outro personagem, um burguês rico, que sai de sua mansão fumando e caminha até a piscina.
É uma cena comum, corriqueira e, ao mesmo tempo, de narrativa envolvente porque vai se repetindo enquanto avança na exposição dos personagens e na evolução deste começo da história. A música reforça as imagens, o trio se aproxima do muro florido e – num jogo eminentemente cinematográfico –, um dos homens olha para a câmera e quebra a quarta parede falando com a plateia. Pronto: já estamos capturados pela trama de “Nós que Nos Amávamos Tanto”, produção consagrada de Ettore Scola, que estreou em 1974, nos cinemas italianos.
As imagens coloridas do início são substituídas pelo preto e branco do flashback que, ao final da 2ª guerra, introduz o trio de protagonistas em sua juventude: Gianni (Vittorio Gassman), Nicola (Stefano Satta Flores) e Antonio (Nino Manfredi); depois da vitória sobre o nazi-fascismo, cada um deles tenta “recomeçar a vida”. Antonio trabalha no hospital e, numa enfermaria lotada, conhece Luciana (Stefania Sandrelli) – a bela jovem que vai encantar e apaixonar os três amigos ao longo da história.
“Nós que Nos Amávamos Tanto” avança no tempo expondo a evolução social e política da Itália enquanto Antonio tenta entender as inovações artísticas e políticas do pós-guerra, Gianni vai assumindo os compromissos (e conchavos) burgueses da advocacia e Nicola encara os desafios provincianos de intelectual cinéfilo numa cidadezinha do interior. Ao mesmo tempo, Luciana tenta a carreira de atriz se envolvendo com os rapazes em momentos de paixão, afeto e traição. As alegrias e tristezas de cada ponta do quadrilátero amoroso marcam os personagens revelados com intenso humanismo por Scola.
Aos 57 minutos da narrativa (aproximadamente), a cor retorna numa cena marcante em que cada intérprete terá que encarar as consequências de seus atos. É numa praça onde Luciana parte fragilizada para o interior; Antonio e Nicola tomam caminhos diferentes – e Gianni observa tudo de longe, escondido dos amigos mas revelado pela câmera aos espectadores. Alguém desenha uma imagem no chão e as cores vão surgindo lentamente na tela; é o cinema indicando a passagem do tempo, o envelhecimento dos protagonistas e o começo de um novo momento histórico e pessoal para cada personagem.
Merece um parágrafo específico a transmutação de Gianni ao conhecer o magnata da construção civil, Romolo Catenacci: os belos ideais da juventude revolucionária vão sendo substituídos pelo pragmatismo objetivo dos interesses capitalistas. A vontade de “vencer na vida” leva o advogado a abandonar Luciana e se casar com Elide, a filha e herdeira de Catennaci. Futuramente, num ferro velho lotada de carcaças e destroços de automóveis, Gianni tem um reencontro místico com a esposa e compreende o preço que pagou pelo sucesso conquistado. É o momento para relembrar e sentir todo o peso de uma frase dita pelo patriarca Romolo sobre a solidão dos ricos e os conflitos com a consciência para alcançar a fortuna financeira.
Ettore Scola era conhecido pelas comédias de sucesso e faz a transição para o drama revelando rigor estético e conhecimento fílmico. O filme de 1974 inicia uma produção de obras consagradas como “Feios, Sujos e Malvados” (1976), “Um Dia Muito Especial” (1977)”, “Casanova e a Revolução” (1982), “O Baile” (1983), “A Família” (1987), “A Viagem do Capitão Tornado” (1990) – e muitos outros títulos. É o cineasta que trabalha as relações e os conflitos familiares, que revela os fatos a partir do impacto no cotidiano das pessoas, que apresenta uma abordagem política ancorada na melancolia e na crítica irônica dos grandes ideais de mudança e transformação; em síntese, um humanista esclarecido que entende os afetos e os fracassos dos rebeldes bem intencionados.
Para os cinéfilos e cinéfilas, o diretor traz referências e homenagens a diversos filmes: a escadaria de “O Encouraçado Potemkin” (1925), a incomunicabilidade de “O Eclipse” (1962), o diálogo revelador de “Servidão Humana” (1964). Além disso, Nicola tem adoração por “Ladrões de Bicicleta”; e essa devoção vai permitir que ele apareça num daqueles programas de TV em que o participante responde perguntas e concorre a expressivos prêmios em dinheiro – sucesso e fracasso dependem das respostas precisamente corretas sobre o cinema italiano. Além das referências, temos o encontro especial com Federico Fellini e Marcello Mastroianni (durante as filmagens de “A Doce Vida”) e a participação especial de Vittorio De Sica – para felicidade e desencanto de Nicola.
É preciso destacar o talento do elenco afinado. Vittorio Gassman se coloca ao lado de Mastroianni como um dos grandes intérpretes do cinema italiano e constrói Gianni com a ambição e o desencanto de quem afinal entende o custo de seus atos. Nanni Moretti é o comediante que abraçou o drama equilibrando o comportamento de Antonio entre o humor e a tristeza de quem vai encarando a vida com as possíveis vitórias de cada dia. Stefano Satta Flores traz a euforia intelectual de Nicola mostrando a soberba daquele que acredita saber mais que os outros e sacrifica a família pelas fantasias de sucesso na crítica de artes e de cinema. Stefania Sandrelli é a musa que encanta e seduz com uma mistura de inocência e sensualidade acreditando que pode vencer como estrela de cinema. Ou seja, o quarteto é intensamente humano nas suas atitudes e paixões bem como ao arcar com as consequências de seus atos.
A trilha sonora é um importante elemento que acompanha as cenas e reforça as imagens capturadas pela câmera; a fotografia utiliza com primor as cores e o PB tendo momentos específicos em que isola determinado(a) personagem para, sob um facho de luz, comentar algo e revelar seus sentimentos; a quebra da quarta parede se repete na narrativa para que os personagens dialoguem com o público e opinem sobre os acontecimentos. E a cidade de Roma é elemento fundamental no desenrolar da trama com os cenários que identificam e indicam a evolução dos protagonistas e, mesmo, trazem para a tela os fatos históricos dos trinta anos registrados no filme.
Enfim, podemos afirmar que Ettore Scola estabelece uma sensível sintonia entre a história, a política e a vida de quatro personagens cujas trajetórias se cruzam em “Nós que Nos Amávamos Tanto”. A compreensão crítica dos fatos se associa à poesia melancólica para convidar o público a embarcar numa viagem cinematográfica em companhia de pessoas que vencem e perdem durante a jornada. E isto é, afinal, a vida!…
Filme: C’eravamo Tanto Amati (Nós que Nos Amávamos Tanto). Elenco: Vittorio Gassman, Stefania Sandrelli, Nino Manfredi, Stefano Satta Flores, Giovanna Ralli, Aldo Fabrizi. Direção: Ettore Scola. Roteiro: Ettore Scola, Furio Scarpelli e Agenore Incrocci. Produção: Itália. Ano: 1974. Gênero: Drama. Sinopse: Três italianos, Gianni (Vittorio Gassman), Nicola (Stefano Satta Flores) e Antonio (Nino Manfredi) se tornam muito amigos durante o ano de 1944 enquanto combatem os nazistas. Cheio de ilusões, eles se estabelecem depois da guerra. Os três amigos idealistas precisam lidar com a inevitável desilusões da vida no pós-guerra da Itália. Classificação: 14 anos. Distribuidor: Dean Film, Deantir e AMLF. Streaming: Indisponível Nota: 10,0 |