Dirigido por Marcelo Caetano, “Corpo Elétrico” acompanha Elias, jovem estilista que trabalha numa empresa de confecção de roupas, interpretado por Kelner Macêdo, nas suas relações pessoais, principalmente com seus/suas colegas de trabalho. É com elas e eles que Elias forma o núcleo libertário da trama. Após o trabalho eles se encontram para se amar e celebrar a beleza que encontram em cada um deles, numa rodada de futebol seguida por um pagode, numa festa em casa ou mesmo nos braços do mar. O filme nos apresenta novas possibilidades e consciências como obra do Cinema Queer. “Corpo Elétrico” traz algo já perceptível nos roteiros do Hilton Lacerda que divide esse roteiro com Gabriel Domingues e o próprio Caetano. Porém nesse filme, além de mais perceptível, por ser o tema central, as experiências queers são uma espécie de arké. As experiências marginais envoltas no cotidiano são sua essência e base. No filme são preservadas sua autenticidade e beleza.
Tudo no filme é, mesmo que sutil, sobre uma forma de existir que confronte o status quo com suas leis que se instalam nas vidas íntimas e se alastram pelos comportamentos e posicionamentos a fim de que seja preservado o mundo heteronormativo, patriarcal e misógino. É por olhar e se/nos colocar diante de questões relativas a esse modelo de sociedade através de corpos marginalizados, que considero “Corpo Elétrico” um filme do Cinema Queer
Sendo queer um termo que abarca as pessoas que apresentam posturas e formas de existir vistas, ditas e tidas como marginais pela forma como sua intimidade profunda se apresenta, acho que cabe caracterizar o filme como tal. O termo é de origem inglesa e a antropóloga Marcia Ocho resume da seguinte forma: “É como te chamam na escola quando querem te zoar”. E como a maioria das pessoas da comunidade LGBTQIA+ são lidas como marginais devido à forma como exercitam o direito à corporeidade e sofrem consequências por serem como são, atrelou-se o termo queer principalmente às expressões sexuais. Porém ser queer não se limita a isso.
As questões que o filme aborda são, em sua maioria, delicadas. Aliás, o filme em si é extremamente delicado. O roteiro apresenta a rotina de forma imersiva. A sensação é que estamos na janela observando os afazeres da nossa vizinha. Tudo flui enquanto assistimos com admiração. Embora tenha um tom ordinário, simples e casual, a rotina é escrita com ganchos que na maioria das vezes são capazes de manter nossa atenção. Na maioria. É certo que não o faz com base na tensão e sim de alguma outra coisa. Algo que talvez nos desperte conforto e identificação junto com curiosidade que vem da busca de algo que difira as nossas vidas daquelas outras também comuns que se mostram na tela.
Há ainda um plano sequência esplêndido, embora nada suntuoso (como tudo no filme), que mostra o trabalho da Fotografia e também a qualidade do trabalho da captação de Som Direto feita por Gustavo Zysman e o Som assinado por Lucas Coelho. As/os colegas de trabalho vão a caminho de um bar e enquanto realizam o trajeto, o grupo vai se formando aos poucos enquanto a atenção se concentra alternadamente à medida que alguém novo chega. É admirável quão longa é a sequência e quão bem as personagens se misturam durante ela. Não é nada simples e talvez por isso seja tão belo. O prazer das personagens transborda a tela. A atuação nos contamina fazendo-nos adentrar ainda mais o filme e seu mundo.
A Direção de Arte faz um trabalho irretocável através da arte que é denominada invisível. Essa que imita a realidade tão bem a ponto de não percebermos que houve um trabalho ali. Embora pouco reconhecido, é o trabalho mais importante. É o que garante a veracidade do que se vê. A simplicidade narrativa, bem como a estética, apresenta uma complexidade intrínseca às relações e atitudes cotidianas na sociedade brasileira. É através desse olhar que, apesar de receber atenção, as sutilezas continuam como tal. Salta a inteligência através do olhar que busca apenas reparar, pousar sua atenção. Com esse feito, poderia mostrar-se o gritante, mas não é como ocorre e a glória do filme é ser assim.
Não precisamos de muitas explicações do filme. É através do pouco que diz-se e faz-se tudo. Isso também percebe-se através dos recortes da Fotografia assinada por Andrea Capella. Não é difícil, e a direção sabe disso, perceber nas relações os desejos que brotam, as conquistas que ficam ou mesmo a caretice silenciosa que morre através da beleza e liberdade na forma de ser e viver a vida sem se saber ou querer algo além disso. A existência e o exercício que ela põe em prática sem exaspero, já diz e faz tudo. No entanto, se é devida a ela que vem a condenação, também devida a ela deverão vir os olhos em aplausos. E virão!
O núcleo é um microcosmos, uma rede e edifício que se preserva apesar das interferências externas, de ordem social. Por exemplo, mesmo Elias ocupando um cargo “acima” de colegas costureiras e cortadores, existe uma cumplicidade entre elas. Embora se preserve algumas vantagens do Elias, é claro, mesmo quando ele ocupa temporariamente o posto de liderança, sua postura não muda. Não se trata de não haver barreiras, desigualdades ou haver alguma insensibilidade às problemáticas. Mas tudo se encontra e se dilui, ou não, no encontro e na busca dessas pessoas pelo o que elas têm em comum sem que precisem ser iguais.
A impressão é que existe a consciência de que há muito mais fatores que as unem do que fatores que as separam. O fator mais relevante é o trabalho e a busca por algo que rompa com a mera sobrevivência. Há a busca por afeto, riso e mar. Muito mar!
Filme: Corpo Elétrico Elenco: Kelner Macêdo, Lucas Andrade, Welket Bungué, Ronaldo Serruya, Ana Flavia Cavalcanti, Linn da Quebrada, Márcia Pantera Direção: Marcelo Caetano Roteiro: Marcelo Caetano, Gabriel Domingues, Hilton Lacerda Produção: Brasil Ano: 2017 Gênero: Romance, Drama Sinopse: Corpo Elétrico acompanha Elias (Kelner Macêdo) que é um assistente numa confecção de roupas no centro de São Paulo. Ele mantém pouco contato com a família na Paraíba e passa seus dias entre os tecidos do trabalho e encontros com homens. O fim do ano traz reflexões sobre possibilidades de futuro, reconexões com o passado e muitas horas extras, que acabam por aproximá-lo dos colegas da fábrica e consequentemente inseri-lo em novos círculos de amizade e cenários. Classificação: 16 anos Distribuidor: Vitrine Filmes Streaming: Net Now, Apple Play, Google Play Nota: 8,0 |