CREPÚSCULO DOS DEUSES

CREPÚSCULO DOS DEUSES

O filme já começa antecipando a consequência de seu último ato. A partir da cena de um homem morto em uma piscina, o espectador é apresentado ao narrador em off que conduz o filme. A narração começa em terceira pessoa, mas logo muda para primeira, quando o narrador volta seis meses na história. É interessante a caracterização do personagem-narrador como um roteirista, pois nos dá a sensação de que estamos assistindo o filme cujo roteiro foi escrito pelo próprio Joe Gillis.  Ele antecipa, por vezes, o que vai acontecer. A segunda personagem principal é apresentada já com a pauta que dá o tom de todo o filme: a crítica. Norma Desmond é uma estrela do cinema mudo que ficou obsoleta com a transição para o cinema falado.

O encontro dos dois protagonistas culmina em uma parceria para um roteiro de uma história bíblica que antecipa perfeitamente os eventos do filme: uma mulher grandiosa que exige a cabeça do homem que a rejeitou.

A metalinguagem é um dos elementos centrais do filme, que se trata do cinema de Hollywood e o protagonista fala sobre e sofre os obstáculos de ser roteirista nesse meio, num filme produzido justamente na era de ouro de hollywood. Gloria Swanson, atriz por trás de Norma Desmond, era realmente uma estrela do cinema mudo fazendo uma volta a partir de Crepúsculo dos Deuses.  Erich von Stroheim, intérprete de Max – o faz-tudo de Norma que posteriormente, devido a um Plot Twist, descobrimos que era na verdade um diretor e o primeiro marido de sua atual patroa – realmente dirigiu Gloria na época do cinema mudo. Além disso, há aparições menores de grandes estrelas do cinema como Hedda Hopper e Buster Keaton, servindo para ilustrar ainda mais fortemente como os Grandes haviam virado descartáveis para a indústria; “bonecos de cera”, de acordo com Joe.

No longa, nenhum personagem de destaque é unidimensional. Todos têm suas ambições e dificuldades bem claras na narrativa. Além disso, não há dificuldade por parte do espectador em sentir empatia com cada um deles.

Joe, o protagonista, é sarcástico, confiante, tem rápido raciocínio e confere respostas imediatas. Norma é intensa, autoritária, convencida, orgulhosa, carente, e, acima de tudo: revoltada com as mudanças da indústria do cinema que a descartou.

Betty, interesse romântico de Joe, é uma jovem bem mais nova do que ele, é um contraponto perfeito a Norma: ambiciosa, mas não tão confiante. Proativa, mas dependente de Joe para terminar um roteiro, o que pode esclarecer melhor o interesse dele por ela, visto que dependência dele perante a atriz o aprisiona e afeta seu ego e seu orgulho, por estar ocupando um lugar inferior, de submissão. Há um diálogo entre Betty e Joe no qual a jovem declara preferir estar fora dos holofotes, por trás da câmera. É um perfeito oposto a Norma.

O roteiro não pinta a atriz apenas como louca ou histérica, mas como somos conduzidos pela narração de Joe, quem tende a confiar em sua narrativa a vê como uma mulher manipuladora e desdenha dela, como o protagonista. Como um dos seus traços mais fortes de construção de personagem é justamente o sarcasmo, ele utiliza isso em sua narração para inferiorizar Norma, tentando mascarar que o real motivo de desaprovação moral é o seu comportamento, enquanto desaprova seu caráter manipulador.

Fica evidente como a rejeição é insuportável para Norma quando ela tenta suicídio depois que Joe a rejeita romanticamente. Por isso, todos enganam ela. Ninguém lhe é sincero. Max, seu funcionário, para protegê-la. Joe, para se aproveitar dela. De Mille, para evitar uma reação negativa.

O roteiro ressalta os efeitos do envelhecimento para a mulher e como isso prejudica ela, mas não o Cecil De Mille, por exemplo. Este reconhece, em uma fala, que tem idade para ser pai dela. Ainda assim, ele é útil, e ela não. Isso é reforçado pela sequência obsessiva de cuidados com a pele e beleza, para se sentir desejável, portanto, útil. No caso de De Mille, sua beleza não importa, ele ainda é visto como importante e talentoso, mas Norma, no auge de sua meia idade, está inutilizada, como se seus anos de trabalho tivessem ficado no passado à medida que as rugas começaram a aparecer. Esse embate de velho versus novo; ultrapassado versus moderno, aparece diversas vezes ao longo da narrativa, começando com o próprio protagonista, seguindo caminho pelo debate do cinema mudo versus falado e terminando com Norma e sua frustração. Isso tudo constrói uma crítica ao sistema hollywoodiano que mastigava seus ídolos que ajudaram a fortificar a indústria e os cuspia quando já não eram mais novidade.

Quando a atriz chega ao estúdio e um técnico de luz a reconhece, desvia a luz para ela e toda a equipe do filme se volta para ela como insetos atraídos pela luz, e Norma ama a atenção. Um personagem fala que achou que ela tivesse morrido. Depois, De Mille manda o técnico de luz “voltar a luz para onde ela pertence”, o que parece ser uma forma do roteiro de demonstrar que o lugar da atriz de meia idade já não é sobre os holofotes. Todos parecem prestigiar a Norma de uma forma nostálgica, como se ela estivesse no passado, incapaz de continuar a fazer parte da indústria.

A trama possui elementos narrativos fortes que servem como um fio na narrativa: a casa vazia, abandonada e repleta de fotos antigas da Norma – é uma casa clássica e cheia de potencial, mas em desuso assim como a atriz que a possui; o carro antigo – que para a atriz era um sinal de imponência, mas para os produtores era apenas um objeto curioso que poderia ser utilizado em cena; a piscina da casa; os amigos de Norma que também já foram estrelas, mas que caíram no esquecimento como ela; as câmeras no final que indicam auge para a atriz em choque e queda para todos ao seu redor.

Ironicamente, quando Norma mata Joe, a casa dela fica cheia e ela fica sob os holofotes novamente. Ela consegue o que queria, mesmo que pela última vez. Nesse caso, há um paralelo com a antiga ambição de Joe de levar uma vida luxuosa e ter uma piscina, com seu trágico final: morto em uma piscina.

Também se destaca o nome da rua em que Norma mora: sunset. Pôr do sol. Indica fim, sem o destaque da luz do sol. Além de uma avenida real e importante de hollywood, o nome parece fazer essa alegoria com a atriz. A tradução do título norte-americano deixa isso mais evidente. Crepúsculo dos Deuses traz à tona a queda de quem outrora havia sido tão importante.

Na sequência final ocorre o momento de auge de metalinguagem, quando Norma diz estar pronta para o close up e a vemos a partir desse ângulo. Ela praticamente invoca a câmera dentro de seu universo, e na sequência final, o diretor respeita esse último pedido, resultando em um final dramático e bem amarrado narrativamente.


Filme: Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses)
Elenco: William Holden, Gloria Swanson, Erich von Stroheim
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Charles Brackett, Billy Wilder, D.M Marshman Jr. 
Produção: EUA
Ano: 1950
Gênero: Drama/Noir 
Sinopse: Para fugir dos representantes de uma financeira, Joe Gillis (William Holden) se refugia na decadente mansão de Norma Desmond (Gloria Swanson), antiga estrela do cinema mudo. Quando Norma descobre que Joe é roteirista, contrata-o para revisar o roteiro de Salomé, que marcará seu retorno às telas. O filme é insuportável, mas o pagamento é bom e como ele não tem muito o que fazer, aceita. Mas o destino lhe reserva surpresas.
Classificação: Livre
Streaming: Telecine Play
Nota: 9,0

 

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