CRÍTICA – 20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS

CRÍTICA – 20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS

20.000 Espécies de Abelhas (20.000 especies de abejas, 2023), escrito e dirigido pela cineasta basca Estibaliz Urresola Solaguren, apresenta a história de Lucía, de 8 anos, e suas descobertas sobre si mesma durante uma viagem ao interior para um evento familiar.

O que fica em evidência, logo nos primeiros minutos do filme, é a dinâmica familiar entre Lucía, que entre seus pais e irmãos é chamada pelo nome de Aitor. Somos apresentados a uma família disfuncional, com uma mãe cansada e um pai que se mostra um tanto despreocupado com os problemas familiares – o que não é muito diferente do “normal” a que somos obrigados a nos acostumar, seja na realidade, seja na ficção.

Lucía, que é o centro desta história, não está feliz com a viagem que estão prestes a fazer e nem com nada ao seu redor: sua irmã mais velha é implicante e lhe chama por apelidos em tom de ofensa, seu irmão, com quem divide o quarto, só pensa em estar perto do pai, ainda que seja o membro da família mais próximo de Lucía. Sua mãe Ane, que tenta de alguma forma criar seus filhos da melhor maneira possível, passa também por dificuldades pessoais que vão além do status “adquirido”, porém eterno, de mãe.

É assim que se introduz o recorte da narrativa que será apresentada ao longo  do filme. De alguma forma, 20.000 espécies lembra o mexicano Totém (2023), tanto pelo protagonismo de uma criança, quanto pela carga emocional que a protagonista precisa suportar. Vale ressaltar que a jovem Sofía Otero, premiada em diversas ocasiões por sua performance como Lucía, lida muito bem com o peso de sua personagem, atuando com fluidez e naturalidade em frente às câmeras.

Aos poucos, entendemos que a trama de 20.000 espécies não é exatamente sobre a “descoberta” do gênero de Lucía, mas sim sobre o entendimento da jovem garota acerca de temas tão importantes e difíceis sobre ela mesma. A dificuldade em externalizar seus sentimentos, dúvidas e angústias para aqueles que estão mais próximos é o mote da narrativa ao redor desta criança.

Há diversos elementos que compõem o drama na história de Lucía: sua visita ao interior se dá pelo batismo religioso de um primo recém-nascido, além disso, seus familiares cristãos estão preocupados com o sumiço da estátua de um santo que se aproxima de sua data de celebração. O batismo, o “sequestro” do santo e as abelhas, que dão o nome à obra, fazem parte do simbolismo dentro dessa história que não envolve somente Lucía, mas que se estende ao resto de seus familiares naquele pequeno intervalo de tempo.

Um dos focos do filme, que considero ser dos mais importantes, é centrado na relação da mãe de Lucía com sua própria mãe, Lita. Seu pai, já falecido, é descrito como se fosse quase um santo e a medida em que as tensões aumentam, os ânimos de Ane e Lita culminam em brigas que vão se tornando maiores até o ponto de ebulição das duas personagens. É notável, aqui, a confusão que assola Ane, não somente por não saber lidar com os problemas de sua filha, mas também por não saber o que fazer com sua própria vida.

O centro dramático da história revela alguns pontos do passado de Ane e pontos importantes de sua atual situação, o divórcio iminente e a sensação de estar perdida profissionalmente aumentam a tensão ao seu redor, o que pode até parecer ser uma forma de “justificar” a falta de atitude ou mesmo o seu não-entendimento na situação de sua filha. Acredito que a intenção do roteiro, aqui, não era “vilanizar” essa mãe, tampouco qualquer outra figura dentro da narrativa. Na verdade, sinto que o texto de 20.000 espécies é, de muitas formas, bastante gentil com suas personagens.

Um dos melhores pontos da obra está na tia-avó de Lucía, Lourdes, que parece ser a única adulta do lugar que busca compreender e acolher a protagonista. A relação estabelecida entre criança e adulta é uma das mais bem exploradas dentro da narrativa e traz à história o elemento necessário de identificação com as personagens. Lourdes parece ser a mais “humana” ali, apesar de ter também seus próprios problemas. Nessa figura está o conforto de Lucía em meio as confusões de seu crescimento e o conforto para o espectador que acompanha o desenvolvimento da história da criança.

A medida em que as dúvidas da protagonista começam a se clarificar em sua mente em desenvolvimento, surgem conflitos óbvios entre suas questões e seus familiares. O processo, que aos poucos se desenrola, não é feito somente de alegrias e aceitação, pelo contrário, os obstáculos da jornada de Lucía parecem apenas se multiplicar, o que infelizmente está mais próximo da realidade do que gostaríamos.

É louvável o trabalho de Solaguren em trazer para as telas uma história tão cheia de nuances, mas que ainda assim é tão simples, quase como se conhecêssemos as personagens retratadas. A linguagem do filme, que se mistura entre espanhol, basco e francês, simboliza a variedade de verdades e subjetividades na vida destas mulheres. As abelhas, mencionadas como seres quase mágicos, importam para a narrativa tanto quanto qualquer outra pessoa, sua simbologia é cuidadosamente inserida no enredo de forma contundente para a história.

A religião, os santos e seus milagres são também incluídos de forma acertada, sem ridicularizar ou se apegar demais aos conceitos e preceitos religiosos. O que se percebe, em 20.000 espécies de abelhas, é o respeito da realizadora no tratamento de todos os temas aos quais se propôs a debater, o que torna a experiência ainda mais frutífera para o espectador. A sensibilidade de Solaguren é, definitivamente, sentida ao apresentar-nos Lucía e seu pequeno universo.


  Filme: 20.000 Especies de Abejas
Elenco: Sofía Otero, Patricia López Arnaiz, Ane Gabarain, Itziar Lazkano, Martxelo Rubio.
Direção: Estibaliz Urresola Solaguren
Roteiro: Estibaliz Urresola Solaguren
Produção: Espanha
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: Uma criança de oito anos luta com o fato de que as pessoas continuam se dirigindo a ela de maneiras confusas. Durante um verão no País Basco, entre as colmeias e as abelhas, ela explora sua feminilidade ao lado das mulheres de sua família, que ao mesmo tempo refletem sobre suas próprias vidas e desejos.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Imovision
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

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