CRÍTICA – A FRAGILIDADE DO GELO

CRÍTICA – A FRAGILIDADE DO GELO

Céus nublados e temperaturas frias no Rio de Janeiro são raridades, e, no momento em que assisti A Fragilidade do Gelo (2023), estava fazendo 22º por aqui — o que para nós, cariocas, é frio o suficiente para vestir um agasalho. Aliás, não só é tempo de moletons e canjas, mas também de ouvir reclamações como: “o dia está feio”. Há de haver alguma explicação psicológica ou anatômica do porquê essa percepção negativa para com o frio existe, mas, aqui, tratando-se do filme, a razão é bem clara se partimos do âmbito emocional. Nesta trama, que envolve três jovens adultos no inverno gélido de Yanji, onde a temperatura chega a graus negativos no inverno, o diretor e roteirista singapurense Anthony Chen faz com que seu trio de personagens, imersos em melancolia, conectem-se de maneira leve e silenciosa, como se nem tivessem forças para ocasionar conflitos maiores, mas é a partir do afeto trocado, do calor sentido entre eles, ainda que em pequenas doses, que está a beleza do filme. Justamente, como são os pequenos detalhes das conexões humanas capazes de ajudar as pessoas em seus estados de tristeza, Chen reconhece o valor disso e faz questão de embelezá-los em momentos poéticos, ainda que, neste ponto, a construção dessas cenas seja um pouco simples demais. Mesmo assim, é agradável assistir a obra de um artista que compreende o ritmo vagaroso de traumatizados e estagnados, e que traduz bem essa sensação nas vias audiovisuais.

Em primeiro lugar, vale apontar que a idade e a profissão dos personagens é relevante para compreender seus estados de espírito. Enquanto jovens adultos, é comum que haja dificuldade em lidar com o envelhecimento e com a pergunta “o que vou fazer da minha vida?”, trata-se de uma etapa natural da vida. Sendo assim, Haofeng é bem-sucedido financeiramente, mas carrega um vazio profundo na alma, o que traz à tona tendências suicidas; Nana trabalha como guia de turismo, e vai a festas noturnas para esquecer do fato de que já foi uma patinadora no gelo medalhista; Xiao é cozinheiro e, além de estar apaixonado por Nana, teme ser uma má influência para seu primo mais novo. Ou seja, o filme traz um recorte, respectivamente, sobre o fato de que o sucesso no mercado de trabalho não implica felicidade, sobre a dificuldade de superar traumas significativos e, ao mesmo tempo, sobre os efeitos da estagnação na vida de um indivíduo. São campos diversos do sofrimento da vida em sociedade, e abrangem espectros da falta de propósito, em todos os casos. Contudo, o filme não tenta encontrar a solução para essa falta —  seria ingenuidade tentar resolver um problema de séculos —, mas busca valorizar o quão importante as conexões humanas são para aquecer um dia após o outro — essa, sim, é a falta que assola milhões de pessoas. Inclusive, o filme traz a presença de chamadas dos serviços de saúde mental locais, que ligam para lembrar Haofeng de que ele precisa comparecer às sessões. Ainda que ele fuja dessas chamadas, a mera representação desses serviços é relevante para fora das telas.

Voltando a essa valorização das conexões, o filme aposta em um ritmo devagar, com poucas interações e poucos diálogos, mas com diversos momentos em que os três curtem a presença um do outro, seja passeando de moto, ouvindo Xiao tocar violão ou com todos em uma festa — e geralmente esses momentos são pontuados por alguma reação de tristeza, desde uma lágrima discreta até choro copioso. Além do mais, em vários desses momentos, o filme abre espaço para uma sequência mais poética e teatral, como a do labirinto de gelo, que isoladamente são bonitas, mas ocorrem de maneira simplória se pensar no fio narrativo que é construído, parecem ser em um estilo artificial de videoclipe, ou de edits, apenas para realçar boas composições visuais. De fato, a trilha musical, assinada por Kin Leonn, é um destaque pela agradável composição etérea, são lindas peças individualmente falando, mas, dentro dessas sequências mais abstratas, só reforçam a artificialidade do conjunto. Isso não acontece sempre, e, especialmente no final, a sensibilidade no uso da música é tocante.

Dito isso, A Fragilidade do Gelo é o fruto de um balanço entre a verossimilhança na sensação do que é estar deprimido e o esforço de valorizar conexões afetivas. De certa maneira, considero este filme o equivalente a um comfort movie, só que para aqueles que estão passando por tempos infelizes. Afinal de contas, é um filme leve, lento, que aquece o coração aos poucos, mas que faz a diferença em um dia de frio — como o suave vapor do chocolate quente que estou prestes a tomar, nos frios 22º do Rio de Janeiro. Apesar dos pesares, é um dia bonito.


Filme: 燃冬 (A Fragilidade do Gelo)
Elenco: Zhou Dongyu, Liu Haoran, Qu Chuxiao.
Direção: Anthony Chen
Roteiro: Anthony Chen
Produção: China, Singapura
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: Na fria Yanji, uma cidade na fronteira norte da China, o jovem turista Haofeng se sente perdido e à deriva. Por acaso, ele faz um passeio guiado por Nana, uma charmosa guia turística que o fascina instantaneamente. Ela o apresenta a Xiao, um simpático, mas frustrado, funcionário de um restaurante. Os três se aproximam rapidamente durante um fim de semana de bebedeira. Confrontando seus traumas individuais, os desejos congelados desses três jovens lentamente derretem enquanto buscam se libertar de um mundo gelado.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Festival
Streaming: Filmicca
Nota: 7,0

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