CRÍTICA – A HORA DA ESTRELA

CRÍTICA – A HORA DA ESTRELA

Atenção: o texto a seguir contém spoilers.

“Sou datilógrafa, sou virgem e gosto de Coca-Cola.” É assim que Macabéa se “apresenta” em certo momento de A Hora da Estrela (1985). O longa-metragem de estreia de Suzana Amaral, inspirado pela obra homônima (1977) de Clarice Lispector, retorna aos cinemas brasileiros em 16 de maio em cópia digital, recentemente restaurada em 4k.

Assim como Suzana Amaral, Marcélia Cartaxo também teve sua estreia na atuação no papel marcante de Macabéa. Em A Hora da Estrela acompanhamos os dias carregados de mundanidade da protagonista que tenta, a seu próprio modo, se encaixar no universo que é a cidade grande de São Paulo. Oriunda do nordeste do Brasil, Macabéa nos é introduzida como uma moça simples, com hábitos de higiene um tanto quanto questionáveis e um instinto de curiosidade quase infantil, que a faz perguntar sobre todos os tipos de assuntos a quem quer que esteja próximo de si.

É muito marcante na obra de Amaral a forma que a diretora e roteirista escolhe para retratar esta protagonista. Embora seja descrita a partir das imagens produzidas no filme como uma pessoa desajeitada e, basicamente, inútil, Macabéa consegue, em meio ao julgamento de quase todos ao seu redor, conquistar o coração de quem lhe assiste, algo que se dá em grande parte pelo carisma e talento sem igual de Marcélia Cartaxo.

Em muitos momentos do filme, a narrativa em torno de Macabéa tende a se mostrar, de alguma forma, engraçada. Durante a exibição na pré-estreia de A Hora da Estrela, ouvi muitas risadas do público que parecia, em grande parte, estar assistindo ao filme pela primeira vez. Pessoalmente, não acho que a história abordada seja cômica, porém entendo a reação causada na plateia em alguma medida.

Macabéa, de uma forma ou de outra, representa o estigma e o preconceito dos sudestinos em relação àqueles que vem do “norte”, como mencionado por Olímpico, “namorado” de Macabéa interpretado por José Dumont. De muitas maneiras, vemos uma caricaturização destes personagens nordestinos que pode levar ao riso em certos momentos, e acredito que parte dela está não somente nestas figuras quase pitorescas, mas em todo o entorno da protagonista.

O mundo de Macabéa não é o lugar mais aprazível para se viver: em todo canto que chega é ridicularizada e são poucas as figuras de suporte a si em meio a trama, cito sua colega de trabalho Glória (Tamara Taxman) e o patrão “seu” Raimundo (Umberto Magnani). Esses dois personagens são basicamente os únicos dentro da narrativa capazes de humanizar a protagonista. Nem mesmo Olímpico, que divide a região de origem com Macabéa, lhe é sensível, pelo contrário, é aquele quem mais a maltrata por ela “não ter jeito”.

Falo sobre todas estas figuras de passagem na história de Macabéa para chegar ao ponto central da narrativa, que se desenrola a partir da ingenuidade da protagonista ao conhecer cada dia um pouco mais do mundo-cão em que vivemos.

Um ponto importante da adaptação da obra é a inserção de um gato no decorrer do filme. De início, pode parecer que as aparições do animal estão ali de forma aleatória, quase que como imagens de transição entre uma cena e outra, porém, o gato é um animal de muitas simbologias. Uma delas está atrelada à sua curiosidade inerente ao mundo ao seu redor. Solte um gato todos os dias no mesmo lugar e ele irá cheirar e observar até reconhecer o ambiente em que está, ainda que este já não seja exatamente uma surpresa em sua vida.

Da mesma forma, Macabéa se encanta com as pequenas coisas que são parte da banalidade da vida daqueles que perderam sua inocência ou curiosidade. Andar de metrô, ir ao parque, se sentir gente. Macabéa afirma, em certo ponto, não estar acostumada ainda com essa coisa de ser gente, detalhe da obra de uma sensibilidade tocante, que é quase impossível não derramar ao menos uma lágrima ao ouvir essas palavras preenchidas por um significado enorme saírem da boca da protagonista de maneira tão casual, como se não fosse nada.

Ao decorrer da narrativa, acompanhamos a escalada de acontecimentos na vida de Macabéa que levarão a um final no mínimo arrebatador. A moça apresentada de maneira simples almeja também desejos simples para a sua vida, que através de sua própria visão, não possui muito valor para a sociedade ou mesmo para aqueles ao seu redor. Embora a obra esteja cheia de estereótipos, a representação da protagonista pelas lentes de Suzana Amaral é particularmente sensível e acolhedora às suas “peculiaridades”.

A Hora da Estrela é um filme marcante por sua abordagem quebrada da transição entre a perda da inocência e o “acordar” para a realidade. Ainda que o mundo de Macabéa esteja rodeado por este real, que se apresenta de maneira dura e muitas vezes paralisante – para o espectador, nunca para a protagonista, que a cada tropeço levanta e começa novamente – sua inocência não chega a ser perdida, o que é o ponto de maior alívio e de maior apelo dramático dentro da obra.

O último ato de A Hora da Estrela é, talvez, o momento de maior maturidade no enredo do filme. Preenchido por uma trilha sonora vivaz, que desde o início embalou as transições do destino de Macabéa, somos levados a seu desfecho. A participação especial de Fernanda Montenegro como uma cartomante na linha tênue entre uma charlatã e uma sensitiva de verdade é o auge da narrativa, não somente pelo encontro de grandes atrizes, mas pela trama envolvendo as duas personagens.

Se durante toda a obra a protagonista enfrentava uma inconsciente recusa à realidade, em sua derrocada, Macabéa continua a seguir seu destino em um mundo que é somente seu e de mais ninguém. A medida em que a cartomante lhe prevê muitas maravilhas futuramente, somos inundados pela alegria de Macabéa em imaginar tudo o que poderia lhe acontecer em um mundo ideal. Na realidade, o fim reservado à moça simples – datilógrafa, virgem e que gosta de Coca-Cola – foi o de “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Ao final, fica com o espectador o sentimento agridoce de que Macabéa viveu, mesmo que por um tempo muito breve, uma vida de sonho e fantasia onde foi a heroína de sua própria história até a hora de sua estrela. Uma heroína de maneira torta, mas sem dúvidas, única.


 A Hora da Estrela (1985) capa Filme: A Hora da Estrela
Elenco: Marcélia Cartaxo, José Dumont, Tamara Taxman, Umberto Magnani, Fernanda Montenegro.
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral, Alfredo Oroz
Produção: Brasil
Ano: 1985
Gênero: Drama
Sinopse: Macabéa, uma migrante nordestina, divide um quarto miserável em São Paulo. Sem ambições, ela trabalha como datilógrafa e sua única motivação é o desejo de namorar. Um dia ela conhece Olímpico, com quem inicia um namoro, mas tudo muda quando Glória decide consultar uma cartomante.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Vitrine Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

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