Tim Burton se tornou sinônimo da estética gótica exagerada e presente em quase todas suas produções. Mesmo filmes que busquem se distanciar dessa associação, como Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas (2003) em vários momentos há manifestação da estética gótica. Porém, um dos filmes que sempre aparece em listas genéricas sobre filmes góticos, A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça é uma constante indicação.
Essa foi uma experiência de revisitação (novamente, não cansa João de reassistir filmes não?), porém de memórias infantis que marcaram dias de medo e pavor da figura lendária do cavaleiro sem cabeça. Lembro claramente de um pequeno João encostado em sua mãe com medo de que a criatura pulasse pelas janelas da casa para decepar sua cabeça. Havia um que mágico, uma aura misteriosa e macabra que capturou meus sentidos imaginários na época (existe melhor época para isso do que uma criança?) e ele se arrastou comigo durante todos esses anos desde esses dias joviais. Essa estética gótica do filme (que remonta muito bem à própria essência do Halloween) é predominante e incrivelmente prazerosa nessa revisitação, permitindo-me entender bem como os elementos de composição do terror (mesmo que atualmente não provoque a sensação aterrorizadora) existentes no filme.
É interessante notar um conflito na protagonista, representante das ideias iluministas que ditam a verdade pelas vias da razão. Ichabod Crane (Johnny Depp) é o clássico investigador dotado de tecnologias avançadas para a respectiva época que contradiz as metodologias investigativas do restante dos meios de justiça do período, representantes do “antigo mundo” que pouco se preocupa e claramente não dá importância para os reais “fatos”.
Esse personagem que infla o ego enquanto símbolo desse pensamento científico descreditado recebe a tarefa de encontrar uma resolução para três assassinatos que aconteceram na região de Sleepy Hollow. Um desafio para ele, que através do caso pode comprovar a eficiência dos métodos que tanto confia.
A narrativa irá girar em torno da conspiração que acontece no vilarejo de assassinatos e da conexão com a figura mística do cavaleiro sem cabeça. Com certeza é o elo mais fraco da composição do filme, afinal, apesar de inserir muito bem o clima de mistério e as peças do quebra-cabeça sem entregar respostas risíveis, sua conclusão é acelerada, com justificativas bobas e expostas de uma maneira que buscava impressionar, mas, é só um montante de respostas que saem pela boca daquele(a) responsável pelo controle da figura sobrenatural. Existe todo um panorama místico em torno de bruxarias que é superficial, pouco aprofundado e completamente pobre em seu contexto. Suas justificativas se manifestam quando necessário, mas de maneira tão leviana, que poderiam ser totalmente ignoradas que não faria diferença alguma para o desfecho e revelação climática. Essa somatória com a exposição enaltece sua falha: muitas falas e pouco exposição visual. Tudo que acontece anteriormente ao início dos assassinatos é exposto através de diálogos, gerando o clássico clichê do vilão que abre a boca nos segundos finais antes de destruir seus antagonistas, só faltou andar ao redor dos heróis com uma risada maligna (a risada tem ao menos), gerando espaço para a reação dos protagonistas que no segundo final conseguem obter sucesso em sua empreitada e destruir o mal sobrenatural e real que assola suas vidas e as de outrem.
As atuações beiram ao caricato e tem determinados momentos que elas não se encaixam de maneira exata ao que o texto falado. Gera uma sensação alienígena, quase de desconexão total com a narrativa, o que promoveu reações quase cômicas e repetições da cena para ver se não havia acontecido algum tipo de confusão. O elenco contém nomes fortes da indústria – Christopher Lee, Michael Gambon, Christopher Walken, Miranda Richardson – que são subaproveitados por conta de um diálogo e uma direção de atuação que parecem arrastados e escritos de uma maneira que não soe natural. As personagens nunca dialogam para além das exposições necessárias para fazer a história seguir, não havendo muita interatividade que beire uma real construção de duas pessoas dialogando.
Some agora esses pontos previamente levantados para uma necessidade de impor metáforas visuais que visem gerar a sensação de que os fatos estão conectados desde o início do filme. Então, há toda uma relação com um brinquedo para crianças de ilusão ótica com um pequeno círculo de papel desenhado uma jaula e do outro lado um pássaro, com cordas de ambos os lados. Quando o objeto é girado com velocidade gerando a sensação de que o pássaro está na engaiolado. O brinquedo aparece com frequência ao longo do filme, tanto para simbolizar a condição da personagem de Katrina (Christina Ricci) que é inclusive quem mais sofre com a direção de atuação, parecendo desconectada o tempo inteiro da narrativa, sendo responsável por boa parte das cenas que a imersão narrativa é quebrada. Essa metáfora se torna um elemento crucial (e mal trabalhado) para Ichabod ter uma reviravolta em suas conclusões (ao final do filme) e descobrir o verdadeiro responsável pelos assassinatos (apesar de já ser óbvio para qualquer público com o mínimo de um neurônio funcional).
Enfim… Depois dessa longa e vasta exposição dos vários pontos negativos do filme, restou algo para ser ao mínimo citado enquanto aspecto positivo?
Sim.
A estética gótica é vislumbrante, de encher os olhos e deixar qualquer entusiasta com um sorriso no rosto (caso queira apresentar o filme, sugiro deixar ele no mudo, criar sua própria trilha sonora e apreciar os visuais). A tomada criativa de Tim Burton brilha aqui, realçando cada característica exagerada do halloween. Toda a ambientação de Sleepy Hollow é um regozijo aos olhos, que ficam encantados com o vilarejo tomado pelas sombras, pelas árvores e bosques retorcidos, a delicadeza da mansão no topo da colina, até mesmo os espantalhos com as abóboras em suas cabeças. Beira uma sensação hipnótica pausar o filme e observar os detalhes, os jogos de sombras, as figuras arborizadas retorcidas ao redor de si mesmas, formando a clássica floresta labiríntica dos contos medievais de terror, em que o sobrenatural reside silencioso nas sombras esperando aventureiros despreparados se tornarem vítimas e participantes das lendas. O cavaleiro incorpora isso ao máximo, sendo excelentemente representado em suas aparições, possuindo um ar imponente de uma criatura mitológica retratada com cuidado. A presença do sangue (necessária para toda história gótica que se preze) não é esquecida, modelando uma violência caricata que encaixa muito bem no tom de ambientação do longa-metragem. Assim, o filme envelheceu muito bem graças ao uso massivo de efeitos práticos, havendo poucos momentos em que os efeitos especiais digitais acontecem (e são tão simplórios que não quebram a imersão do filme). O filme não alivia em sua violência, havendo decapitações e exageros a todo momento, quase nos fazendo esquecer das atrocidades que giram em torno de todos os outros aspectos previamente comentados.
Esses elementos estéticos góticos quando relacionados ao relato introdutório do pequeno João permitiram uma melhor compreensão da manifestação de medo na infância. O filme possui todos os aspectos exagerados do gótico, que quando somados em uma mente infantil, afloram a possibilidade de o fenômeno ficcional ser transportado para a realidade concreta da criança. As sombras, os relâmpagos, os assovios do vento, as plantações decadentes, as florestas retorcidas, a criatura mitológica sem cabeça que sai na noite para ceifar suas vítimas, permitem que qualquer criança vivencie a história clássica gótica de terror, quase hoje não mais relembrada nos elementos folclóricos globais. A tendência de promover filmes que abusam dessa estética, mas decaem no absurdismo de ação, afastam essa sensação folclórica da história clássica de assombração no interior (mesmo que o interior aqui não seja o nacional em que estamos acostumados). É interessante observar esse retrato visual singular que se tornou sinônimo de filmes sobre caçadores de figuras sobrenaturais (e quem sabe isso abra portas para explorar outros filmes que dialoguem com essa estética, não é mesmo? Não basta essa experiência, tem que haver uma tortura constante de assistir filmes no mínimo questionáveis).
No fim é um apelo estético prazeroso que não se sustenta apenas por isso. Se superar essa barreira, desligar muito bem os neurônios, talvez compense. Somente talvez…
Filme: Sleepy Hollow (A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça) Elenco: Johnny Depp, Christina Ricci, Miranda Richardson, Michael Gambon, Christopher Lee, Christopher Walken, Jeffrey Jones, Richard Griffiths Direção: Tim Burton Roteiro: Washington Irving, Kevin Yagher, Andrew Kevin Walker Produção: Estados Unidos Ano: 1999 Gênero: Crime, Suspense, Mistério, Terror Sinopse: Ichabod Crane é enviado ao vilarejo de Sleepy Hollow, onde um cavaleiro sem cabeça está deixando um rastro de corpos decapitados. Os métodos investigativos de Ichabod são postos à prova, pois um ser sobrenatural pode ser o causador dos crimes. Classificação: 16 anos Distribuidor: Paramount Pictures, Summit Entertainment, Constantin Film Streaming: Prime Video, Google Play, Apple TV Nota: 6,0 |