Após o ótimo “Assassinato no Expresso do Oriente” e o fraco “Morte no Nilo, Kenneth Branagh dirige e revive seu papel como o icônico Hercule Poirot em “A Noite das Bruxas”, a terceira adaptação das famosas histórias de Agatha Christie pelo diretor. Aqui, Poirot é convocado por sua amiga escritora, Ariadne Oliver, para investigar uma inusitada sessão espírita em um palácio em Veneza. Um evento macabro acontece quando um dos convidados é assassinado, obrigando nosso famoso detetive a sair de sua aposentadoria e adentrar no ocultismo sobrenatural.
Ambientado em uma Veneza sombria, “A Noite das Bruxas” utiliza uma narrativa que se desenrola em uma atmosfera assombrosa, com incursões no sobrenatural que dão à trama um toque inquietante. Branagh incorpora com destreza elementos clássicos de filmes de terror, como os jump scares e a sensação de que algo sobrenatural está à espreita. Logo no início da projeção, somos apresentados a uma festa de Halloween, repleta de crianças órfãs e máscaras assustadoras, oferecendo um início sinistro, enquanto a trilha sonora contribui com murmúrios e gritos de crianças ao fundo. Através de uma boa mixagem, esses gritos alternam ligeiramente sua espacialidade, dando a impressão de que eles ora vêm do ambiente festivo das crianças, ora de alguma localidade dentro da casa.
Os objetos na mansão também desempenham um papel crucial na criação de uma atmosfera de mistério sobrenatural. Branagh usa closes em relógios macabros – como serpentes e outros elementos aterrorizantes de forma criativa. Além disso, a cinematografia mergulha o espectador na cidade italiana de canais e palácios decadentes, onde a iluminação sutil e a paleta de cores amareladas e sombrias criam uma atmosfera de pavor crescente. A jornada de Poirot pelos canais de Veneza é um destaque visual, à medida em que o diretor escurece todo o cenário ao redor dos botes em que Poirot e os demais personagens se dirigem ao palácio.
Aliado a isso, Kenneth Branagh volta a utilizar com destaque os closes em plongée (enquadramento de cima para baixo) e contra-plongée (enquadramento oposto ao plongée). Em “Assassinato no Expresso do Oriente”, Branagh aproveitou os closes para criar uma claustrofobia envolvente, refletindo perfeitamente a sensação de confinamento a bordo do trem. Os closes eram como paredes se fechando, fazendo com que o espectador se sentisse tão apertado quanto os próprios personagens, presos num trem com um assassino à bordo. Aqui, no entanto, embora os closes continuem a ser uma ferramenta eficaz para transmitir a desorientação de Poirot em face dos eventos sobrenaturais, sua inclusão as vezes parece excessiva. Branagh recorre a esses closes em momentos em que sua justificativa é questionável, resultando em uma sensação de mero maneirismo visual e, em alguns casos, uma narrativa fragmentada.
Sendo assim, o longa funciona mais na construção dessa ambientação, apoiando-se fortemente na dualidade de mistérios que enfrenta: Poirot, notório cético, se depara não apenas com o enigma do assassinato, mas também com o enigma de suas próprias convicções. Seriam aqueles peralços sobrenaturais reais ou apenas uma farsa? Branagh tenta construir essa dualidade, como se dois mistérios se entrelaçassem de forma intrincada. No entanto, apesar de tecnicamente habilidosa, “A Noite das Bruxas” deixa a desejar no desenvolvimento do mistério central. A construção desse mistério e sua resolução sofrem com um roteiro que carece de pistas e recompensas significativas para o espectador. A narrativa muitas vezes se apoia na exposição direta de Poirot, enquanto a conclusão é entregue de maneira abrupta, deixando a sensação de que o público foi privado de uma experiência mais envolvente de dedução. A ausência de uma melhor articulação na ‘pista e recompensa’ deixa o espectador se sentindo desligado do processo de resolução do enigma da morte da criança.
É evidente que Kenneth Branagh se concentra em manter o público em dúvida sobre a natureza sobrenatural do mundo retratado, criando um clima de inquietação palpável. Uma pena que esses dois mistérios estão desequilibrados, com uma clara ênfase no sobrenatural em detrimento do mistério da morte da criança. Uma abordagem mais equilibrada teria potencializado ambos os aspectos da narrativa, sem empobrecer o enigma central da trama.
Aparecendo algumas vezes nas obras de Agatha Christie, a personagem Ariadne Oliver funciona como alter ego da autora. Escritora de livros de mistérios de renome, Ariadne Oliver, nas obras de Christie, frequentemente funciona como um alívio cômico, adicionando uma pitada de humor à narrativa, mais do que desempenhando um papel substancial na resolução dos mistérios. No entanto, a adaptação cinematográfica parece enfrentar desafios ao tentar capturar plenamente essa dinâmica. O foco na criação de uma atmosfera de terror, embora eficaz em muitos aspectos, pode impedir que a personagem de Ariadne Oliver brilhe como um alívio cômico. Em alguns momentos do filme, quando Branagh tenta reviver essa essência, ela parece um tanto deslocada ou até mesmo “boba”, o que pode ser atribuído à tentativa de equilibrar sua presença com o tom mais sombrio e sobrenatural do enredo.
Nesse contexto, “A Noite das Bruxas” se destaca mais por sua habilidade em criar uma atmosfera de terror envolvente e na forma como os elementos narrativos colaboram para essa ambientação do que propriamente em seu enigma central. É uma experiência cinematográfica divertida, embora esteja aquém do nível alcançado por “Assassinato no Expresso do Oriente”.
Filme: A Haunting in Venice (A Noite das Bruxas) Elenco: Kenneth Branagh, Kyle Allen, Camille Cottin, Jamie Dornan, Tina Fey, Jude Hill, Ali Khan, Emma Laird, Kelly Reilly, Riccardo Scamarcio, Michelle Yeoh, Dylan Corbett-Bader, Amir El-Masry, Fernando Piloni, Lorenzo Acquaviva Direção: Kenneth Branagh Roteiro: Michael Green Produção: Estados Unidos Ano: 2023 Gênero: Crime, Terror, Mistério Sinopse: O célebre detetive Hercule Poirot, agora aposentado e vivendo em autoexílio voluntário em Veneza, relutantemente participa de uma sessão espírita de Halloween em um palácio decadente e assombrado. Quando um dos convidados é assassinado, o detetive é lançado em um sinistro mundo de sombras e segredos. Classificação: 12 anos Distribuidor: 20th Century Studios Streaming: Indisponível Nota: 6,0 *Estreia dia 14 de setembro de 2023 nos cinemas* |
One thought on “CRÍTICA – A NOITE DAS BRUXAS”