CRÍTICA – AINDA ESTOU AQUI

CRÍTICA – AINDA ESTOU AQUI

Ainda Estou Aqui

Esculpir a memória

O tempo e o espaço se transmutam em cinema e as memórias de uma família nos são, verdadeiramente, caras. Após mais de dez anos do seu último longa-metragem, Walter Salles retorna com um filme agridoce, feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz, pois, temos a oportunidade de conhecer o seio da família Paiva, suas belezas, delicadezas e singularidades. Triste, pois, suas alegrias foram silenciadas pela Ditadura Militar Brasileira, em 1971, quando Rubens Paiva, protagonizado por Selton Mello, desaparece, após ser levado pela polícia. A partir disso, a vida de todos muda completamente e Eunice Paiva, protagonizada por Fernanda Torres, se torna o alicerce da família.

Walter Salles conheceu e conviveu com a Família Paiva quando era criança/adolescente e é perceptível o respeito que possui por todos eles. A sensibilidade com a qual o diretor retratou as minúcias cotidianas e conduziu as interações entre o elenco é belíssima, já que a intimidade criada e transpassada é sentida em tela por meio dos toques, sorrisos e olhares. O filme tem como base o livro de título homônimo “Ainda Estou Aqui”, escrito por Marcelo Rubens Paiva, em que fala sobre a luta da sua família pela verdade do que aconteceu, de fato, com seu pai quando ele foi levado pelos militares e desapareceu. Além de ter o livro como principal ponto de partida, o cineasta também captou depoimentos de amigos e familiares e fez uso do acervo de fotografias da família para construir o roteiro. É devido a isso, portanto, que Ainda Estou Aqui é um filme, visivelmente, repleto de camadas, já que as nuances do seu roteiro não se esgotam de uma cena a outra.

O cinema é uma espécie de máquina do tempo que abriga um arcabouço de memórias, através dele conseguimos alcançar e alçar passados utópicos ou possíveis. A fotografia enquanto documento histórico é um laço desse emaranhado e, aliado a isso, a escrita de uma história relatada por meio de depoimentos são dois aspectos que Walter Salles constantemente corrobora em sua história. A figura de Rubens Paiva foi, e continua sendo, perpetuada pelas memórias de quem ele foi um dia. Em Cabra Marcado para Morrer, filme de 1984, o diretor Eduardo Coutinho reconstrói a figura de João Pedro Teixeira, camponês e operário, por meio de depoimentos dos seus companheiros de trabalho e familiares; ele foi um dos fundadores da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, e foi assassinado. Diante disso, percebe-se que a oralidade é poderosa, porque é uma continuação de seus ideais e da figura de liderança que Teixeira foi. Coutinho se utiliza da voz, Salles da imagem.

Há uma Câmera Super-8 na história do filme, mas, mais do que um simples símbolo de fotografia caseira, essa câmera e suas imagens são estruturadas enquanto dispositivo documental. Logo, a Câmera Super-8 é viva, ela é parte da família e transmite quem eles foram através de suas cores, movimentos e cortes de cena fugazes. Ela representa a adição visual que a família é. Esse dispositivo fílmico nos adiciona camadas, pois, é como se assistíssemos a imagens de arquivo da família no meio de um filme de ficção. Ademais, para além de uma decisão estética, foi também uma forma de ilustrar as inúmeras fotografias familiares que os Paiva sempre cultivaram.

No centro de tudo, há a figura de Fernanda Torres dando vida à mulher que Eunice Paiva foi, e demonstrando toda força e vigor que ela precisou ter para ser o alicerce de sua família. A atuação de Fernanda é fenomenal, consegue transmitir suas emoções sobriamente, mantendo a linha tênue entre benevolência e rigidez. Em momento algum, o filme tenta capturar nossas lágrimas por meio de trilha sonora emocionante; ele capta nossas emoções reais quando enxergamos a realidade em tela, a história do Brasil. Mais uma vez, reitero, que o respeito de Walter Salles por essa história está em todos os detalhes.

A vivacidade da vida carioca é um deleite: é sol, praia e música. Ao passo que o filme se desenrola, a subtração de cores e luzes se complementa à adição de espaços vazios. É como se a casa da família fosse a representação de um Brasil tomado por silêncios, incertezas e temores. O retrato do Brasil que durou 21 anos, durante o Regime da Ditadura Militar. Entretanto, da mesma maneira, e na mesma medida, o núcleo familiar é também o retrato de um Brasil possível. O filme de Walter Salles é sobre laços, a Ditadura Militar é um personagem secundário. Andrei Tarkovsky dizia que o tempo e a memória são lados de uma medalha, eles são unidos e incorporados como uma só entidade. É sempre um prazer assistir a um filme sensível; é o cinema como poesia.


Filme: Ainda Estou Aqui
Elenco: Fernanda Torres, Selton MelloFernanda Montenegro, Humberto Carrão
Direção: Walter Salles
Roteiro: Walter Salles Murilo Hauser Heitor Lorega
Produção: Brasil, França
Ano: 2024
Gênero: Drama
Sinopse: Nos anos 1970, no Rio de Janeiro, durante a ditadura militar do Brasil, o deputado Rubens Paiva foi sequestrado por soldados para interrogatório. Nunca foi encontrado. A sua mulher e família começaram a descobrir a verdade do seu destino, numa busca que duraria 30 longos anos.
Classificação: 14 anos
DistribuidorSony Pictures Classics
Streaming: Indisponível
Nota: 9,5

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