CRÍTICA – ALÉM DO TEMPO

CRÍTICA – ALÉM DO TEMPO

A vida é um sopro e tal verdade é a todo tempo evidenciada seja por perdas em nossas famílias, por notícias trágicas nos telejornais ou, até mesmo, através do cinema – em filmes de ficção e não ficção. Não que seja sobre isso, mas Além do Tempo (2022), filme holandês do diretor Theu Boermans, se inicia através de uma perda precoce e insuperável. Em uma viagem de veleiro Lucas (Reinout Scholten van Aschat) e Johanna (Sallie Harmsen), pai e mãe, respectivamente, precisam lidar com o sumiço em alto mar – imaginando a inevitabilidade da morte – de seu filho Kai (River Oosterink).

Ainda que o ponto de partida seja sobre a morte de uma criança, não é este o interesse do diretor. Há, aqui, uma curiosidade maior sobre os pais, que está em como eles reagirão a esta dor. O filme, que é baseado em uma história real, dramatiza sem a espetacularização que é tão comum em obras como esta. Evidentemente que para quem tem filho o nível de emoção atinge graus maiores, mas é impossível que alguém seja indiferente ao que se vê em Além do Tempo.

O filme se constrói através de três tempos. O passado durante o incidente no qual vemos a família unida, emanando amor, aproveitando bem o tempo juntos. O pós-incidente onde Lucas e Johanna precisam se reencontrar e o tempo presente o qual mostrará que certas feridas jamais cicatrizarão. Boermans pontua de forma bem enfática esses três tempos. Constrói a ideia de família amorosa e feliz, quebra isso em uma escalada de tensão idealizando, em seu início, uma brincadeira entre pais e filho, mas terminando com a constatação de que Kai não está mais ali. Nesse momento o coração aperta, a boca fica seca e o desespero toma conta do espectador.

Passado esse momento vemos, agora, dois personagens quebrados. Cada um sobrevivendo à sua maneira. Lucas encontra no trabalho a sua fuga, e nada mais simbólico do que trabalhar com demolições. Um pai destruído pela morte de seu filho demolindo estruturas, muitas vezes, na base do ódio. Enquanto isso Johanna se mantem inerte, em um estado de depressão que aflige todos ao seu lado, sobretudo Lucas que precisa cuidar de si e dela.

O mar funciona quase que como um personagem. Ele é o início e de certa forma o fim. E está sempre rodeando os personagens. A casa de praia, o apartamento com vista mar de Lucas, enfim, é um personagem que está ali para não os deixar esquecer. Por vezes se parece mais com um instrumento de punição, como acabou sendo com Johanna todas as vezes que ela teve visões de seu filho.

Há um momento do filme – talvez o único – em que o diretor demonstra uma certa desconfiança para com seu público. Logo no início do filme existem algumas cenas do mar ondulado refletindo o brilho do sol e, já na casa de praia, quando Johanna deitada no chão olha para os raios de luz que entram pelo vidro da janela, a câmera captura o mesmo tipo de brilho na poeira em suspensão. De imediato é feita a ligação com aquela imagem do oceano, mas Boermans, sem confiar na capacidade do espectador, escolhe ser didático demais ao colocar novamente a cena do brilho das ondas do mar. Por sorte em outras ocasiões ele escolhe dar autonomia a quem assiste, para que este desenvolva seu próprio raciocínio acerca do que está vendo.

Além do Tempo não brinca com a dor e não espetaculariza o sofrimento. Na verdade, o filme utiliza de muita sensibilidade para mostrar o quão difícil é a jornada do luto. Seja através de uma trilha sonora intimista que está lá quase que a todo tempo, mas em hora nenhuma se sobrepõe aos personagens, as atuações e à própria trama. Trama esta que traz muita verdade consigo. O coração partido de ambos os personagens, cada um tentando se reconstruir e não sabendo, ao certo, qual a melhor forma de fazer isso para si e para o outro. Um trauma como esse mostra toda a nossa falibilidade. E de uma forma bastante honesta leva os personagens a percorrerem caminhos não opostos, mas diferentes na busca pela ressignificação daquela dor, daquele buraco no peito.

O diretor constrói algumas cenas que marcam quem assiste ao filme. Elas estão lá para não deixar dúvidas quanto ao amor que Lucas e Johanna sentem um pelo outro, pois mesmo seguindo caminhos diferentes terão sempre uma história e terão sempre o Kai, um amor incondicional que será sempre um ponto de união entre eles. Há dois movimentos importantes e repetidos no filme. O primeiro é o abraço que Johanna dá em Lucas. Ela o faz como um símbolo de apoio e de respeito a dor dele. Ele é o tipo que internaliza o sofrimento, mas ela reconhece quando ele precisa de apoio. O outro gesto é o dar as mãos, que serve sempre para que Lucas a segure forte como a dizer que está ali para o que Johanna precisar. É lindo ver essas cenas acontecerem com eles jovens e, também, depois de 40 anos, quando uma vida inteira já passou, mostra que por mais que o tempo tenha passado para eles, que eles já tenham construído outras histórias, o amor e a cumplicidade nunca deixaram de existir.

Com o filme se passando em dois tempos bem distantes um do outro – 40 anos – foram necessários, óbvio, dois atores para cada personagem. Sem me ater às aparências físicas, embora o ator que interprete o Lucas mais idoso (Gijs Scholten van Aschat) seja pai do ator que interpreta o Lucas jovem, é muito interessante a construção/modificação das personalidades. Quando jovens são mais intensos e quando o mundo desmorona aos seus pés, perdem completamente o senso de direção. Agora, 40 anos depois, mesmo com o sofrimento latente ainda, possuem uma conduta já estabelecida, levando a embates raivosos, com diálogos ásperos, ácidos e muitas vezes cômicos, sobretudo por revelar como um machucou o outro no passado ao mesmo tempo que tudo isso pode ser superado pelo amor que sentem um pelo outro.

Em determinado momento Lucas diz que sua peça teatral sobre Kai é uma ode à vida. Ao terminar de assistir Além do Tempo fico com essa mesma impressão, pois o filme tem, também, esse papel.


Filme: Zee van tijd (Além do Tempo)
Elenco: Sallie Harmsen, Reinout Scholten van Aschat, Elsie de Brauw, Gijs Scholten van Aschat, River Oosterink, Barbara Sobels, Koen Franse, Mieneke Bakker, Diana Dobbelman, Ruben Lürsen, Jules Hamel, Kim Hertogs
Direção: Theu Boermans
Roteiro: Marieke van der Pol
Produção: Países Baixos
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Lucas e Johanna vivem nos anos 1970 e 80, perdidamente apaixonados, em um mundo cheio de sonhos e ideais. Então, um acidente desastroso, durante sua viagem de barco no Atlântico, os separa. Trinta e cinco anos depois, no fim de suas vidas, os dois se reencontram e seu amor profundamente enraizado ainda é muito forte.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: A2 Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 8,4

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