CRÍTICA – AQUI

CRÍTICA – AQUI

Robert Zemeckis e Tom Hanks revivem sua consagrada parceria marcada por clássicos como Forrest Gump: O Contador de Histórias (1994) e Náufrago (2000). No entanto, em Aqui (2024), a dupla se afasta das grandiosas narrativas em múltiplos cenários. O filme se passa inteiramente em um único espaço, com o enquadramento fixo em uma janela de uma casa. Através dessa abordagem aparentemente minimalista, Zemeckis explora como o tempo é capaz de transformar um lugar, convidando o espectador a refletir sobre temáticas como memória, permanência e mudança. O filme tem recebido destaque na mídia tanto pelo retorno da parceria – que também inclui Robin Wright, de Forrest Gump –, quanto pela ampla utilização da Inteligência Artificial (IA).

A temática da relação entre tempo e transformação não é inédita na obra de Robert Zemeckis. Em Forrest Gump, seu filme mais premiado, o diretor constrói um panorama histórico das transformações sociais, culturais e políticas dos Estados Unidos ao longo de décadas. A trama incorpora elementos históricos marcantes às experiências íntimas do protagonista – que narra os eventos impulsionando a narrativa. Já em De Volta para o Futuro, o diretor aborda essa questão de forma literal, utilizando viagens temporais para explorar o poder do tempo como agente de transformação. Nesses filmes, há sempre um ponto de ancoragem, que funciona como um elo entre o presente, o passado e o futuro – seja um banco de praça, seja a garagem de um cientista excêntrico.

Mas o que difere Aqui das obras anteriores é que pela primeira vez o diretor está menos interessado na história em si e mais focado em como ela está sendo contada para o espectador. Em vez de buscar soluções dentro da própria narrativa – como os flashbacks em Forrest Gump e as viagens temporais em De Volta Para o Futuro –, as decisões de ordem estética se tornam tão – ou mais – importantes quanto os temas tratados, assumindo deliberadamente um tom experimental. Assim, o Tempo é encarado não apenas como um elemento marcante da história, mas uma presença quase palpável, moldada pela maneira como é encenado, influenciando e se entrelaçando às dinâmicas da narrativa. Ou seja, Robert Zemeckis busca, através do estilo e da imersão em nível sensorial, ampliar o impacto que a passagem do tempo tem sobre o espectador.

Das decisões de ordem estética que contribuem com esse feito, a filmagem concentrada em um único espaço e sob a mesma perspectiva sem dúvidas é a que se sobressai. Ao fixar a câmera em um único ângulo, a relação entre tempo e espaço é moldada quase exclusivamente pela mudança temporal – uma vez que o espaço não muda. A passagem do tempo é responsável por transformar as dinâmicas sociais e as relações subjetivas que se desenrolam dentro daquele único ambiente, transformando um mesmo espaço em outro lugar – como o lar de uma família que foi construído sobre um cemitério indígena. Vemos a casa ser construída e acompanhamos a rotina das pessoas que a habitaram ao longo de algumas décadas.

Outro elemento marcante é o uso do extracampo, que no seio do digital assume uma nova interpretação, transcendente à área fora do campo tradicional – dado pelo espaço capturado pela câmera. A janela da casa isola o ambiente interno do mundo exterior, que, exceto por um fragmento, sempre permanece virtual e nunca é incorporado ao campo. Esse extracampo evoca mudanças sociais ocorridas nos Estados Unidos, incitando o espectador a refletir sobre essas transformações, ao mesmo tempo em que amplifica as mudanças que ocorrem fora dos limites visíveis da tela. Embora permaneça virtual, essa dimensão do fora de campo constantemente ressignifica a ação cênica e os seus elementos.

Além disso, o extracampo – visual e sonoro – é explorado também em um sentido mais tradicional. Dentro da casa, há uma parede invisível que divide a sala dos demais cômodos, atuando como limite intransponível para o público. O extracampo visual, frequentemente imaginado pelo espectador, é incorporado ao campo a partir do enquadramento de objetos que refletem – como um espelho – a presença de outros espaços e sugerem a continuidade da casa para o além do visível, produzindo imagens – em sobreposição – desse extracampo. Isto é, são criadas soluções para o enquadramento desses elementos, sem que a câmera precise se mover.  Amplia, assim, a percepção do ambiente e da dinâmica das relações que nela acontecem.

O terceiro elemento notável é o uso da Inteligência Artificial (IA), tratada como solução predominantemente visual, sem uma função criativa independente. Tal tecnologia é empregada de forma evidente no rejuvenescimento dos atores, na sobreposição das imagens (em uma espécie de “colagem”) e objetos e na construção de cenários. Por meio dela, elementos visuais e espaciais passam a interagir, sobrepondo imagens, dinâmicas e diferentes planos narrativos. Essa combinação de elementos, alguns reais e outros virtuais, produzem um mosaico interativo e dinâmico, onde as camadas visuais e narrativas se fundem em um único espaço – e consequentemente em uma única imagem.

Em conjunto, essas três decisões fazem com que se extrapole a divisão tradicional de planos no cinema – inclusive a própria noção de plano -,  que passam de três para um número quase infinito. Assim, impõe tantos desafios quanto soluções para o seu filme. Isso torna a experiência sensorial muito mais rica, já que os eventos não ocorrem de maneira linear, mas sim através de uma teia de significações complexas, imersiva e em camadas. Desafiando, assim, as percepções de continuidade e causalidade no cinema. Entretanto, ampliam o impacto e o alcance do espectador sobre os elementos invisíveis que conectam o visível ao simbólico.

Assim, Aqui emprega uma tecnologia recente para compor um produto audiovisual híbrido, que desafia as limitações físicas ou práticas do cinema convencional – ou do chamado cinema “puro”. Embora o filme não se restrinja ao uso da Inteligência Artificial, essa inovação desempenha um papel central na construção estética da obra. Essa abordagem lembra o que as Wachowskis realizaram em Matrix (1999), ao popularizar o uso do CGI integrado a efeitos práticos, e James Cameron em Avatar (2009), ao combinar captura de movimento e CGI avançado para criar universos imersivos. Assim, a tecnologia não substitui os elementos de cena, mas promove uma interação que antes não era possível entre eles. Desta forma, seu uso se incorpora à uma proposta de estilo elaborada por Robert Zemeckis.

Por mais que o filme provoque discussões sobre os limites da tecnologia no cinema, seu uso é amplamente guiado por decisões estéticas e criativas previamente concebidas – isto é, intermediadas pelo pensamento e trabalho humanos. Aqui é uma obra que explora as possibilidades artísticas desse artifício, podendo até ser interpretado como uma incursão experimental. Essa veia experimental remete especificamente a Tango (1981), curta do videasta experimental Zbigniew Rybczyński, que utilizava o vídeo para explorar novos formatos narrativos e estéticos. De maneira análoga, Robert Zemeckis explora a Inteligência Artificial (IA) como ferramenta para expandir as fronteiras da linguagem cinematográfica (ou audiovisual). Portanto, Zemeckis ousa ao aplicar ao mainstream audiovisual um conceito estabelecido há décadas por artistas experimentais de vídeo, amplificando a sua utilização.

Em Tango, toda a sequência se desenrola em um único espaço, onde janelas e portas servem de entrada para novos elementos. Esses elementos pertencem a naturezas diferentes e interagem por meio de um processo de “colagem” – termo que substitui a noção de montagem com o surgimento do vídeo. À medida que novos componentes são introduzidos, há uma progressão rítmica que remete a uma dança – o Tango. A interação entre esses elementos é virtual (assim como acontece em Aqui), só ocorre no campo da imagem e na mente do espectador (não existem previamente em cena, diante de uma câmera), produzindo um efeito sensorial que fundamenta o conceito da obra. 

É crucial destacar que o uso da Inteligência Artificial (IA) em Aqui não possui um caráter fetichista ou que ultrapasse limites éticos claros – como tem sido sugerido sobre a substituição de trabalhadores ou a desumanização da criação artística.  Ao contrário, a IA é uma ferramenta essencial para a obra, que só existe e ganha forma por meio dela. Na sua ausência, o filme sequer existiria. A crítica que enxerga na IA uma ameaça ou um desvio ético ignora completamente o seu valor estético e inovador aplicado em Aqui, revelando uma compreensão um pouco superficial e reducionista da função da tecnologia no cinema. Além disso, não há sequer indícios de uma intenção universalizante da sua aplicação – o que aí sim seria problemático – expressa no filme.

Em suma, Aqui reúne alguns elementos recorrentes na obra de Zemeckis: a parceria com Tom Hanks, o Tempo como temática principal e a presença de uma estação de transição, de onde partem as viagens – literais e simbólicas – no tempo. No entanto, ao invés de um banco de praça ou uma garagem, é uma janela que, em Aqui, permite o trânsito entre passado, presente e futuro. Mas o que realmente se destaca em seu novo filme não são as semelhanças com suas obras anteriores, e sim a ousadia da inovação. Pela primeira vez, Zemeckis revela uma veia autoral latente, buscando soluções criativas para contar a sua história de forma única e impactante. Ao transformar a sua abordagem cinematográfica, deixa uma marca poderosa e irreversível.


Filme: Aqui (Here)
Elenco: Tom Hanks, Robin Wright
DireçãoRobert Zemeckis
RoteiroRobert Zemeckis, Eric Roth
Produção: Estados Unidos
Ano2024
GêneroDrama, Experimental
Sinopse: Ambientado em um único lugar, ’Aqui’ acompanha diversas famílias ao longo de gerações, todas conectadas por este espaço que um dia chamaram de lar. 
Classificação12 anos
Distribuidor: Miramax, ImageMovers
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

 

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