CRÍTICA – ARCANE (1° E 2° TEMPORADAS)

CRÍTICA – ARCANE (1° E 2° TEMPORADAS)

Uma das expressões contemporâneas mais bem estruturadas e executadas da mídia audiovisual. Provavelmente um clássico que supera sua mídia original, mas sem esquecer suas origens no mundo dos jogos eletrônicos – e um dos mais populares, no momento de escrita dessa crítica, que é League of Legends. Existem muitos elementos a serem comentados, afinal, o comprometimento é tentar analisar as duas temporadas de Arcane enquanto obra completa (ponderações específicas sobre cada temporada serão ressaltadas ao longo do texto). Então, se você é familiar a obra, ou não, te convido para essa viagem pelo universo fantástico de Runeterra, que simultaneamente revisita tropos clássicos da ficção científica e não deixa de agregar os próprios temperos no andar do fazer ficcional fantástico!

Arcane é ambientado na cidade de Piltover, onde predomina a estética Steampunk com a narrativa explorando as barreiras do conhecimento que leva à manifestação do Magicpunk, no qual a magia e a tecnologia estão para se mesclarem apesar dos riscos desse tipo de experimento fronteiriço. Existe um vasto elenco de personagens canônicos no jogo que a série adapta; então, são três eixos que a narrativa segue: os eventos macronarrativos, que geram consequências para todos os presentes do elenco; o lado intermediário, que enlaça essa macronarrativa com o terceiro eixo; e este – o micronarrativo –, no qual acompanhamos os arcos individuais externos e internos das personagens da série.

A narrativa tem início do ponto de vista de Powder e Violet, duas adolescentes que vivem em Zaun,  periferia subterrânea da cidade de Piltover, onde predomina o lado pobre e marginal da sociedade: mafiosos, ladrões, cientistas malucos, comerciantes ilegais, corrupção e muita sujeira. Já Piltover é o lado de cima da cidade, em que vivem os nobres, estudiosos, filantropos, guildas comerciais legalizadas e famílias antigas. Assim é estabelecido de primeira o conflito de classes que é visível pela disposição geográfica: cidade alta e cidade baixa. Em Piltover, temos Jayce e Victor, cientistas orientados por Heimerdinger, que querem explorar a união entre a tecnologia e as runas mágicas, descobrindo o poder nomeado de Hextec. Essas quatro figuras – Powder, Violet, Jayce e Victor – são as forças motrizes da narrativa, que, posteriormente, receberá Caitlyn, filha da chefe de segurança de Piltover. Esses personagens, com variações de relevância conforme o episódio e com participações importantes de outros elementos secundários na trama, movem a narrativa através dos três eixos previamente expostos.

Vamos dividir a crítica por partes iniciando nossa viagem através da animação que é simplesmente genial, competindo com os dois filmes do “Spiderverso” do super-herói Homem-Aranha (2018-2023) em questão de maiores expressões da animação contemporânea (sim, eu sei que tem vários competidores nessa lista, mas vamos nos manter nesse tópico especificamente no quesito animação).

O nível de experimentalismo somado à criatividade faz de Arcane uma das expressões mais únicas dos dias contemporâneos, afinal, não acerta somente pela qualidade da animação entregue, seus méritos se expandem para as diferentes técnicas e tipos de animação que são utilizadas ao longo de todos os episódios. Variando entre o tradicional 3D que se transpassa de 2D até aos visuais mais psicodélicos possíveis, a série utiliza muito bem das paletas de cores e designs visuais para cada um dos personagens da série somando-as às belezas dos cenários diversos, que possuem diferentes aspectos e construções criativas. Todo episódio tem a tradição de iniciar (mas isso ocorre em outros momentos específicos de determinados capítulos) com uma cena que é praticamente um clipe musical em que os animadores exploram as possibilidades diferenciadas de técnicas e estilos! E esses momentos musicais – somados à todos os outros elementos previamente comentados – não oferecem só o prazer estético visual de testemunhar uma belíssima animação (o que já valeria por si só), mas contemplam a narrativa da história (seja ela interna aos sentimentos dos personagens ou externa aos eventos decorrentes); então, há sempre um propósito naquilo que está sendo exposto e transmitido para nós visualmente.

Arcane acerta muito bem no quesito “mostrar mais do que falar”, logo não existem momentos gratuitos ou pesadamente expositivos, apelando-se para o que o público entenda de maneiras mais sutis o que os olhares estão dizendo (na segunda temporada existem cenas que dialogam até mesmo narrativamente através da taxa de quadros escolhida pelos animadores), não havendo o pedantismo frequente em obras fantásticas de encher o público com explicações e mais explicações que não agregam em nada para nós a não ser um excesso de informações. Essa delicadeza em construir os elementos da narrativa com enfoque nas exposições visuais abre portas para os animadores construírem histórias paralelas através de pequenas cenas que contam arcos além daqueles que protagonizam os eventos principais da narrativa. Na segunda temporada, existe toda uma sequência de cenas rápidas (no entanto detalhadas!) de uma família (esposa e filha) se despedindo do pai que é convocado para lutar no conflito épico de encerramento. Acompanhamos os vários momentos (despedida – recrutamento – batalha – morte – funeral) e eles são rápidos, mas elaboram e realçam as consequências do conflito – relembrando que não são só os protagonistas que vivem naquele mundo e que aqueles que compõem os lados mais simples e menos poderosos nas tramas daquela narrativa também são envolvidos e sofrem. O mundo de Arcane é vívido e transpira pela tela diante do público!

Por outro lado, complementando com quase perfeição, vem a riqueza de detalhes nos arcos narrativos individuais de cada personagem presente no elenco. Arcane segue a narrativa que caminha em um crescendo épico, estabelecendo uma jornada para uma batalha final em grandes proporções que desafiam a existência cósmica daqueles que vivem em Piltover e Zaun. Ao longo dessa trajetória, as narrativas individuais das personagens se entrelaçam, se desafiam e se unem conforme os encontros e desencontros. E são derivados eixos temáticos: luta de classes, busca por liberdade e representatividade, os limites do saber científico, as subtramas políticas manipuladoras, quais são os custos do poder e do fanatismo; assim, Arcane é recheada de tropos discursivos em seu texto e visual que contemplam diversificados públicos, pois é uma obra com muito para dizer e, simultaneamente, possui muita ação! Existem grandes sequências de combate que geram empolgação, tensão e são imbuídas de beleza visual estonteante levando a narrativa para frente, jogando-nos em um mar caótico de sensações e expectativas!

Deixarei aqui um exemplo através de vídeo que denota e realça o experimentalismo da animação somado ao espetáculo narrativo do “mostrar mais do que falar” que Arcane incorpora como seu pilar central. Mesmo alguém que esteja lendo o texto e não saiba absolutamente nada da história do seriado, ou de League of Legends, é capaz de interpretar e retirar informações sobre o passado das duas personagens que tem seu embate neste vídeo:

Já no que tange o quesito adaptação há outro acerto preciso: League of Legends é atualmente um dos jogos online mais populares, carregado de histórias e narrativas elaboradas previamente no universo do game – porém, contadas por uma colcha de retalhos lá e cá através de eventos no jogo e no próprio site da empresa. As personagens possuem movimentações icônicas e existe um elenco vasto e rico de jogadores dedicados a explorar massivamente as mecânicas dos campeões disponíveis no game. Daí advém uma série de dificuldades ao adaptar esse tipo de mídia interativa para o modelo audiovisual (o que gerou um número extenso de adaptações medíocres e severamente criticadas tanto por especialistas de cinema quanto pelos entusiastas da obra original). Arcane consegue superar cada uma dessas barreiras entendendo que a linguagem audiovisual é completamente diferente do jogo e realçando o nível técnico elaborado pelos roteiristas e pela equipe de design: imbuir a obra com referências ao jogo e manter as referências originais previamente estabelecidas pelo cânone construído, mas sem focar nesse aspecto se esquecendo do público leigo ao conteúdo do jogo eletrônico. Então, a série é funcional para aquele que não conhece absolutamente nada desse universo ficcional, contextualizando com sabedoria esse público nessa narrativa fantástica, e simultaneamente (principalmente pelo visual) dialoga com o ferrenho entusiasta, que perscruta os mínimos detalhes da animação conforme as narrativas fragmentadas que League of Legends entrega de seu mundo e seus habitantes.

Existem determinadas ressalvas em relação ao ritmo narrativo específico da segunda temporada muitas vezes passando a sensação de que tudo está indo rápido demais, inclusive tratando de um vasto elenco com várias perguntas e diversas expectativas para as respostas que serão dadas ao espectador. Nada de absurdo que venha a comprometer a experiência do público com a obra, mas aquele mais atento pode encontrar certos furos e resoluções originadas do famoso “deus ex-machina” que são formadas por conveniência. É interessante de que tudo que a série se comprometeu ao longo de sua narrativa principal (e dos arcos pessoais das personagens) são obtidas respostas e novas perguntas são implementadas no seu encerramento, incitando e dizendo quase abertamente que haverá uma continuação, mas essa não será nomeada de Arcane; afinal, o arco narrativo envolvendo Piltover e Zaun pode ser considerado finalizado.

Gostaria de comentar em específico uma cena do episódio 7 da segunda temporada para ressaltar todos os aspectos previamente elogiados sobre a série para exaltar a qualidade para os leitores – mas, já fique sabendo que você adentrará no território de SPOILERS a partir do próximo trecho! Então leia consciente disso!

No momento específico, temos a personagem Powder em um universo alternativo no qual Violet morreu nos eventos ocorridos no primeiro episódio, não havendo a resolução trágica da transformação de Powder em Jinx. Ekko é o personagem que viajou para essa linha alternativa do tempo presenciando as alterações e se defrontando com a versão amistosa e nostálgica da amiga de infância que possuía – o que contrasta com a vilanesca Jinx da linha temporal original com quem ele se defrontou também no episódio 7 da primeira temporada. É estabelecido logo de cara uma relação quase amorosa entre Ekko e Powder; conflitando com as memórias de Ekko da amiga e a versão presente de Jinx, quando essa cena se manifesta, percebe-se todas as nuances dessa relação e os sentimentos contraditórios presentes no protagonista do episódio. Tudo é realçado pela letra da música genialmente composta por Stromae:

Minha Melhor Inimiga (part. Pomme) (tradução Laise).

(Eu te amo, eu te espero, eu te amo, eu te espero)

(Eu te amo, eu te espero, eu te amo, eu te espero)

(Eu te amo, eu te espero, eu te amo, eu te espero)

(Eu te amo, eu te espero, eu te amo, eu te espero

 

Você é a melhor coisa que me aconteceu

Mas também a pior coisa que me aconteceu

Naquele dia em que te conheci, talvez eu preferisse

Que aquele dia nunca tivesse acontecido (acontecido)

 

A pior das bênçãos

A mais bela das maldições

De você, eu deveria me afastar

Mas, como diz o ditado

Antes mal acompanhado do que só

 

Você sabe o que dizem

Mantenha seus amigos por perto

Mas também

Os inimigos mais perto ainda

 

Mas minha melhor inimiga é você

Afaste-se de mim, o pior somos nós dois

Mas se você ainda busca minha voz

Esqueça-me, o pior somos nós dois

 

Por que seu nome me machuca

Quando ele está escondido bem aqui no espaço?

Qual é o sentimento, ódio ou ternura

Quando ouço seu nome?

Eu te disse: Não olhe para trás

O passado te seguirá e te levará para a guerra

 

Mas minha melhor inimiga é você

Afaste-se de mim, o pior somos nós dois

Mas minha melhor inimiga é você

Afaste-se de mim, o pior somos nós dois

 

Simultaneamente existe uma alteração na taxa de quadros da animação ficando a quatro quadros por segundo e referenciando a habilidade especial que Ekko possui, através de uma máquina, de retornar quatro segundos no tempo. Existem então três camadas nesse pequeno fragmento do episódio: as contradições sentimentais do protagonista, o realce dessas contradições através da letra da música e a referência estabelecida com a habilidade especial do personagem no jogo – o que também dialoga narrativamente com a máquina que será desenvolvida por Ekko, com auxílio de Powder nessa linha temporal, e que o permitirá retornar a sua linha do tempo original. Esse é um minúsculo exemplo de inúmeros que exaltam a genialidade presente em Arcane! Ouse explorar e abra sua mente para essa experiência que é, com certeza, um dos melhores títulos presentes no catálogo original da Netflix!


Série: Arcane – League of Legends
Elenco: Hailee Steinfeld, Ella Purnell, Kevin Alejandro, Katie Leung, Toks Olagundoye, Reed Shannon, Amirah Vann, Ellen Thomas, JB Blanc, Harry Lloyd
Direção: Christian Linke, Alex Yee
Roteiro: Christian Linke, Alex Yee
Produção: Estados Unidos
Ano: 2021/2024
Gênero: Ação, Aventura, Fantasia
Sinopse: Em meio ao conflito entre as cidades-gêmeas de Piltover e Zaun, duas irmãs lutam em lados opostos de uma guerra entre tecnologias mágicas e convicções incompatíveis.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Netflix
Streaming: Netflix
Nota: 9,9

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