Normalmente para quem, de alguma forma, trabalha com o cinema, sobretudo na área da crítica, as semanas que antecedem o Óscar se tornam uma verdadeira maratona. E esta é uma corrida que, para muitos, não há como vencer. Alem da enorme quantidade de filmes há, também, a barreira da disponibilidade desses filmes – muitos sequer vão chegar aqui. Eu já tive meus momentos em que saía atrás de cada um dos filmes indicados, mas, atualmente, sequer tenho tempo para tal exercício. Mas como cinéfilo e crítico que sou o Óscar não me passa despercebido. Maratonei as animações (Nimona é uma das melhores animações dos últimos anos) e assisti alguns outros filmes e um destes foi o documentário As 4 Filhas de Olfa.
Esta produção de vários países envolvidos (França, Tunísia, Alemanha, Arábia Saudita e Chipre) conta a história de Olfa, uma mulher tunisiana, mãe de quatro filhas. Logo de início, através da trilha sonora, já somos levados a um estado de pesar. Conhecemos algumas personagens reais, como Eya e Tayssir (filhas de Olfa) e suas vestimentas pretas corroboram com o clima pesado, de perda que é instaurado logo quando o filme começa.
Fugindo um pouco do padrão, mas também não muito longe de se tratar de um cinema convencional, logo entendemos que existe uma espécie de filme dentro do filme. A nossa frente vemos um documentário que traz a preparação para um filme ser feito. Os relatos que acontecem é como se fossem um making-of de um outro filme. Mas mesmo este making-of – que no final trata-se do verdadeiro filme –, é de uma potência avassaladora.
As 4 Filhas de Olfa vai contar a história de Olfa, desde sua infância até os dias atuais, mãe de quatro garotas. Nada muito aprofundado. O documentário é uma espécie de entrevista, entretanto não segue aquela estrutura padrão e rígida de um entrevistador fazendo uma série de perguntas e uma entrevistada respondendo de forma direta às perguntas feitas. Há até uma diretora do filme dentro do filme, vivida pela atriz Hend Sabry. Esta personagem serve para dar rumo àquela história. É ela quem vai determinar, através das arguições, provocações e reflexões para onde quer que Olfa e, consequentemente, suas duas filhas Eya e Tayssir nos levem.
O que poderia causar algum tipo de quebra na crença – o fato de duas atrizes no lugar das irmãs mais velhas -, dá ainda mais intensidade àquela história por, justamente, a falta das filhas misturada com a presença destas atrizes, causar bastante comoção à Olfa. De fato a indiferença por parte de algum espectador é inconcebível assistindo a este filme.
Nesta obra temos, basicamente, apenas mulheres em tela, mas engana-se quem pensa que elas são as únicas personagens. A diretora Kaouther Ben Hania faz questão de pontuar as passagens pelas quais determinados personagens homens interferiram na história daquela família. As marcas que elas carregam são dolorosas, indeléveis e transpassam a tela. E novamente reafirmo, é impossível ficar indiferente.
É bem verdade que Kaouther Ben Hania consegue captar um misto de sentimentos. Consegue arrancar alguns sorrisos daquelas meninas sofridas, consegue criar um ambiente acolhedor que as libertam para sonhar, mas também cria certas encenações em que as lembranças, das mais amargas, voltam a ser experimentadas, principalmente, por Eya e Tayssir. E em uma dessas memórias, em que um abuso vem à tona – única cena com um personagem masculino presente –, percebemos a quantidade de fraturas que existem naquela família e na relação entre Olfa e suas filhas.
Olfa não teve uma vida fácil é bem verdade, ainda criança teve que se impor para proteger sua mãe e irmãs, já que seu pai havia os abandonados. Seu casamento não foi dos mais felizes e o fato de ter 4 filhas, trouxe a ela a preocupação de que suas filhas não precisassem passar por tudo o que ela passou. Entretanto esse excesso de zelo misturado com uma educação rígida, uma vez que estamos falando de um país árabe, no qual as mulheres têm pouco ou nenhum direito, acabou por tolher suas filhas de viver.
A diretora Kaouther Ben Hania faz questão de não se isentar. Deixa muito claro sua opinião sobre aquela história que está sendo contada. E mais uma vez a personagem da diretora, dentro do filme, que, por vezes, encarna uma Olfa mais jovem, direciona o discurso para uma reflexão de como esse comportamento de Olfa foi prejudicial e levou elas até aquele momento.
Se ao longo do filme vamos nos perguntando onde estão e o que poderia ter acontecido com as irmãs mais velhas, Ghofrane e Rahma, é, somente, próximo ao fim que sabemos que ambas acabaram servindo à “revolução”. Enxergaram no Jihad a liberdade que não tinham em casa, sob a pesada mão de Olfa. Mas este foi um caminho sem volta.
Para além de achar culpados, As 4 Filhas de Olfa nos conta como o meio interfere nas diversas gerações. Em como mulheres sofrem pela total falta de liberdade e direitos. E como uma mãe, ao tentar proteger suas filhas de todo o mal que uma sociedade patriarcal impõe, acabou por repetir todas as violências que ela mesma sofreu quando criança.
As 4 Filhas de Olfa é uma história real, triste, forte e que demonstra como estas mulheres são resilientes. Apesar de tudo o que sofreram e ainda sofrem – Ghofrane e Rahma estão presas no Líbano e Rahma tem uma filha de 5 anos, presa junto com ela – continuam de pé, continuam sonhando e ainda têm forças para sorrirem.
Filme: Les filles d’Olfa (As 4 Filhas de Olfa) Elenco: Olfa Hamrouni, Eya Chikhaoui, Tayssir Chikhaoui, Nour Karoui, Ichrak Matar, Majd Mastoura, Hend Sabry Direção: Kaouther Ben Hania Roteiro: Kaouther Ben Hania Produção: França, Tunísia, Alemanha, Arábia Saudita e Chipre Ano: 2023 Gênero: Documentário Sinopse: A partir do desaparecimento de duas de suas quatro filhas, a história da família de Olfa é contada através de uma jornada de rebelião, violência e esperança. Classificação: 14 anos Distribuidor: Streaming: Indisponível Nota: 9,0 |