CRÍTICA – BARBIE

CRÍTICA – BARBIE

Barbie se tornou um fenômeno de marketing: com memes, virais e artistas de peso endossando e participando do filme. O carisma dessa produção e toda a campanha de Barbenheimer fez com que o longa se consolidasse como o mais falado e comentado de 2023. Tanto que sua estreia nos cinemas ganhou um status de filme-evento (o primeiro pós-Ultimato), que mobilizou a audiência a vestir rosa e bater recordes no Brasil. Felizmente, Barbie supre as expectativas, com um filme deliciosamente sarcástico, divertido e surpreendentemente dramático e profundo.

Mesmo com todos os ingredientes para cair nas armadilhas de sua pretensão. Barbie consegue ir além e ser muito mais do que um filme para vender boneca ou reposicionar a marca no mercado. A sua essência está justamente em tratar questões extremamente humanas, ao vermos a personagem título – vivida por Margot Robbie – entrando em crise existencial e precisando lidar com isso.

Os principais méritos de tirar a produção da mesmice podem ser facilmente atribuídos a jovem diretora Greta Gerwig, que inicia o seu filme com uma referência muito bem calculada de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, a qual confere o tom de sátira ao mesmo tempo que inicia as discussões em torno da boneca criada em 1959. Por sinal, essa fatia temporal dos anos 60 e da Era de Ouro de Hollywood serve de base de muitas outras referências e para a idealização da Barbielândia. Gerwig cria o seu mundo cor-de-rosa de technicolor a partir de referências de filmes da Old Hollywood, como o próprio O Mágico de Oz. Ela abusa do matte painting, cores vibrantes, efeitos visuais práticos e cenários analógicos, que referenciam as casas de boneca e acessórios da Barbie. É tudo exageradamente artificial, falso e irreal – um mundo de plástico perfeito se você for uma boneca –, que utiliza a lógica lúdica da Barbie como linguagem cinematográfica, complementando, assim, o seu visual maravilhoso.

A diretora aproveita muito bem o primeiro ato para nos apresentar com muita facilidade as regras desse universo fantasioso e articular diversas referências com o intuito de trabalhar essa artificialidade do mundo perfeito. Os números musicais, as ações coreografadas, o overacting é tudo muito funcional para a construção de universo, que passa a ser ameaçado quando a Barbie Estereotipada (Robbie) começa a questionar a sua própria existência com pensamentos de morte e celulites. Para continuar “perfeita”, ela precisa se aventurar no mundo real e encontrar a dona de sua boneca. Nessa transição de realidades, vemos como Greta Gerwig tem amplo domínio e conhecimento de sua história, ao evitar ficar se auto explicando e didatismos baratos, transformando o filme em seu grande “faz de conta que”.

Acompanhada de Ken (Ryan Gosling), Barbie tem um choque de realidade com o mundo real ao descobrir que a criação da boneca, ainda que significativa no final dos anos 50, não resolveu os problemas das mulheres (lógico) e que a sociedade literalmente caminhou para o oposto da Barbielândia.

Nessa aventura, os dois personagens seguem caminhos distintos, onde até o Ken vai passar pela sua jornada de autoconhecimento – uma temática muito presente em todos os filmes da Greta Gerwig, na qual ela aborda essa fase da autodescoberta (na adolescência ou adultos) de forma dolorosa e difícil.

Dentro dessa proposta, Margot Robbie está impecável como Barbie Estereotipada. A sua atuação parece simples, mas é repleta de camadas. A forma como ela entende o seu arco de desencantamento de si mesma e a busca pelo propósito é incrível. A atriz desconstrói o ícone aos poucos, onde vemos o sorriso encantador dar lugar a um semblante angustiante, as lágrimas que escorrem enquanto está vestida da roupa mais colorida possível, a pose de Barbie e o pescoço espichado que ficam cada vez mais cabisbaixos. Neste sentido, Robbie e Greta entram em completa sinergia em como enxergam a sua personagem e a levam para os caminhos mais interessantes e tortuosos. Enquanto isso, Ryan Gosling entrega o suco da “Kenergia” ao conhecer um pouco mais sobre as estruturas sociais e o funcionamento do patriarcado. Os trejeitos, a forma de falar, o timing cômico e a profundidade dramática por trás de cada piada boba personificam o boneco como todo mundo imaginou que ele seria e de uma forma que só o ator seria capaz.

Ainda que os dois passem por jornadas parecidas na busca por propósito, as diferenças de abordagem de cada um destes personagens se torna gritante no segundo ato, pois enquanto Barbie caminha para a humanização a partir de uma ótica carinhosa, Ken, na sua busca por identidade, se torna um aglomerado de estereótipos vazios e se distancia ainda mais do seu objetivo inicial. É em seu arco, por sinal, que o texto consegue ser o mais debochado possível, principalmente na forma em que representa a cultura heterossexual masculina.

A propósito, por mais que o seu texto seja bastante auto centrado nos personagens da Mattel, o núcleo humano de Barbie encabeçado por America Ferrera, Ariana Greenblatt e Will Ferrell é essencial para discutir o efeito da boneca no mundo real. Nos sentimentos intrusivos e melancólicos de Glória (Ferrera) que cresceu infeliz por nunca ter atingido os padrões irreais da boneca que brincava, o embate geracional entre Sasha (Greenblatt), mãe e Barbie que discutem a “incoerência feminista” por trás do conceito datado da boneca e expõe os malefícios por trás do consumismo e, por fim, na representação do CEO da Mattel (Ferrell) que mostra o funcionamento da indústria cultural e grandes corporações.

Pelo fato de existir uma infinidade de temáticas, subtextos e gêneros atuando em Barbie, Gerwig utiliza uma narradora onipresente (Helen Mirren) para auxiliá-la a ditar o ritmo da trama e guiar narrativamente o filme. Além disso, é a partir da voz de Mirren que surgem os melhores comentários metalinguísticos e quebras de quarta de parede, que convidam e convocam a participação do público. A trilha sonora composta por Mark Ronson e Alexander Desplat, as músicas (originais ou não) e cenas musicais também são de suma importância para a diretora condensar, simplificar a sua escrita e escancarar os seus subtextos, evitando que o longa seja mais verborrágico do que já é e assuma uma posição mais acessível, tendo em vista a classificação indicativa de 12 anos.

Na contramão de muitos filmes de bonecos e quadrinhos por aí, Barbie é um filme muito mais democrático, pois não se ancora e nem depende de participações e referências, que seriam entendidas apenas pelos fãs e consumidores da marca, para conseguir cativar a audiência; está tudo lá, claro, mas não saber de onde é determinada roupa, acessório ou personagem não vai interferir em nada no seu entendimento e envolvimento emocional com a história. Tanto que eu, que nunca fui consumidor e tampouco público-alvo da boneca, consegui me divertir, me emocionar e me sentir parte, pela primeira vez, desse mundinho cor-de-rosa da Barbie. 

Agora, se surtiu esses sentimentos em mim, não consigo nem imaginar o que esse filme pode significar para uma menina que cresceu amando e brincando com a boneca e hoje, como adulta, se vê questionando as suas problemáticas enquanto produto. Mas o que me parece é que Barbie é uma daquelas produções raras, que funcionam quase como uma máquina do tempo, as quais te levam para dar risada, abraçar, curtir e, sobretudo, se reconectar com sua criança interior.

Esse turbilhão de sentimentos causados não é por menos. Barbie é de uma complexidade narrativa impressionante, além de ser corajoso ao desconstruir a boneca, que simboliza a Mattel, e fazê-la descer do salto alto para criar autoconsciência de sua problemática e privilégios – uma Barbie que está muito longe de ser fascista. É surpreendente como Greta Gerwig venceu a queda de braço e o jogo de concessões narrativas entre um grande estúdio e a Mattel – esta última foi objeto de muita piada e sarcasmo – para criar um blockbuster autoral, que carrega fortes traços do mumblecore, e um filme que mostra a extensão do repertório artístico da diretora, ao passear com muita sutileza e naturalidade entre referências visuais da Old Hollywood, fortes acenos ao cinema de Jacques Demy, a acidez de sátiras sociais e o soco no estômago de dramas existenciais em um estalo. 

Quem diria que um filme da Barbie seria esse exercício semiótico travestido de blockbuster, capaz de gerar tantas reflexões acerca do nosso mundo.


Filme: Barbie
Elenco: Margot Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Ariana Greenblatt, Will Ferrell, Simu Liu, Kingsley Ben-Adir, Kate McKinnon, Michael Cera, Issa Rae e Helen Mirren
Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig e Noah Baumbach
Produção: Estados Unidos
Ano: 2023
Gênero: Comédia, Fantasia
Sinopse: No mundo mágico das Barbies, “Barbieland”, uma das bonecas começa a perceber que não se encaixa como as outras. Depois de ser expulsa, ela parte para uma aventura no “mundo real”, onde descobre que a beleza está no interior de cada um.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Warner Bros. Pictures
Streaming: Indisponível
Nota: 9,5

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