CRÍTICA – BETÂNIA

CRÍTICA – BETÂNIA

Em pleno Festival Berlim de 2024, Marcelo Botta levou uma trupe de artistas para fazer uma apresentação do Bumba-Meu-Boi após a exibição de Betânia. A ideia foi trazer uma das principais figuras identitárias do Maranhão e mostrar a diversidade cultural do Brasil, ao mesmo tempo que expandia a atmosfera do filme para além das telas ao redor do mundo.

Ao invocar desta forma a cultura do São João do Maranhão e fazer o recorte dos maranhenses que moram nas vilas aos arredores dos Lençóis Maranhenses, o diretor confia em seu olhar de representar de forma fiel esta identidade e de não tirar o protagonismo e o local de fala destas pessoas. Por isso, sua história assume um ponto de vista quase que documental, pela crueza e naturalidade em que trabalha o seu filme. Assim, Diana Mattos – a atriz protagonista que vive a personagem título – é inserido no meio de habitantes reais desta região, que nos agraciam com sua visão de vida.

É um trabalho primoroso por parte do diretor de dirigir estes momentos intimistas e de Mattos de se colocar ao centro dessa discussão sem roubar o protagonismo quando as senhoras do vilarejo estão falando sobre suas vivências e de representá-las quando não estão em cena. São estes momentos, por sinal, que credenciam a sua atuação como uma das mais singelas e significantes do ano,sendo a grande responsável por fazer o filme funcionar dentro desta proposta, pois está na figura de Betânia, personagem inspirada Dona Maria do Celso, a linha que separa a ficção do documentário.

É muito claro, a referência do longa ao trabalho oscarizado de Chloé Zhao e Frances McDormand em Nomadland. Não só pelo conceito em si, de colocar uma atriz em meio a não-atores, mas pela sinergia entre diretor e protagonista em como contar a história de uma mulher enlutada após a morte do seu marido, por descaso do governo, e que encontra na sua família, cultura e nas dunas motivos para seguir em frente em meio às secas e adversidades que a vida coloca em nossa frente. Neste sentido, a ambientação nos Lençóis Maranhenses ganha significado para além do cartão postal. O parque nacional recebe contornos para lá de poéticos, se tornando uma manifestação natural acerca das passagens e ciclos da vida.

Gravado durante a época em que as lagoas estão cheias (entre abril e setembro) – com o turismo em alta – e o distanciamento externo durante o período da seca (entre outubro e março). A ideia aqui não se vale a apenas de um recurso temporal para demonstrar a passagem de tempo, mas justamente frisar as questões cíclicas e que há sempre um recomeço e fim para tudo, por mais doloroso que possa soar. Aqui, por exemplo, Botta reflete sobre como as dunas conseguem mudar o curso dos rios aos poucos e trazendo uma analogia para a nossa própria vida em como circunstâncias mudam a direção que seguíamos. Do outro lado, ele também mostra que existe beleza na seca, quando as lagoas são substituídas por campos floridos no meio dos Lençóis Maranhenses. Indicando que, por mais que estejamos vivendo um período difícil, nunca não vai existir oportunidades de nascer flores lindas e viver algo belo em meio a tempos complicados.

Filmar os Lençóis Maranhenses e construir imagens lindíssimas não é nenhum desafio para qualquer um; basta apontar uma câmera para horizonte ou qualquer lugar ao seu redor para conseguir fotos maravilhosas. Até porque não existe, no mundo todo, um lugar como os Lençóis e sua beleza. E é exatamente aqui que conseguimos separar fotógrafos e pessoas comuns do trabalho de direção de fotografia de Bruno Graziano que, sim, capta as paisagens em tom de cartão postal (e acho que ninguém vai reclamar de admirar este lugar dos mais diversos ângulos em tela), mas não se deixa levar pela facilidade de apenas construir imagens bonitas. Existe muito significado, para além da estética, na fotografia de Graziano e na maneira em que a montagem tece as correlações entre ambiente e Betânia. 

O cinematógrafo confere um ar muito forte de irreverência, que nos apequena constantemente perante a imensidão branca dos paredões de areia, dunas e lagoas (elas secas ou cheias), como também carrega um lado intimista ao mostrar como estes habitantes e principalmente Betânia se misturam com muita naturalidade ali. Como na cena em que a protagonista está carregando um balde de água na cabeça e sua silhueta se assemelha a árvore curvada atrás, ou quando as quatro senhoras estão conversando sentadas num tronco de árvore curvado. É como se estivessem mostrando como os nativos se curvam ao ambiente e a natureza agradece se moldando a eles. Muito diferente, por exemplo, das civilizações das grandes metrópoles latino americanas ou interioranas, cujo crescimento desenfreado busca dobrar a natureza à sua vontade – seja através da construção de prédios e mais prédios ou propostas de privatização de praias — e também na perda da identidade cultural.

De um ponto de vista quase antropológico, Betânia também é uma história de resistência: sobre o confronto entre a modernidade e a influência externa com a manutenção da identidade local. Isso se manifesta principalmente na divertida crítica acerca do turismo na região – mais forte dos não-brasileiros –, mas também na metáfora do lixo de outros países e cidades do Brasil, que chegam ao litoral dos Lençóis pela maré e vento. Rapidamente, ao chegarem nas areias, eles se tornam instrumentos de percussão para os pescadores tocarem as suas músicas. Por sinal, a musicalidade está bastante presente em Betânia, onde cada faixa carrega consigo o conceito de resistência cultural para com a influência externa: seja nas músicas autorais de Tião Carvalho – também intérprete de Ribamar – como as músicas internacionais, que, assim como os lixos das praias, ganham forma maranhense através do reggae.

Em meio a muitas mensagens e analogias, Marcelo Botta aproveita a diversidade dos personagens cativantes da família de Betânia para trazer à tona diversas questões – do conservadorismo ao embate geracional. O problema é que infelizmente eles ficam muito superficiais, não são aprofundados e tampouco desenvolvidos no clímax. Soa até um pouco decepcionante no terceiro ato, quando o diretor abre mão dos vários pequenos incêndios do núcleo familiar para focar na subtrama de Tonhão (Caçula Rodrigues) que se perde com um casal de franceses em meio aos Lençóis. Em primeiro momento esta passagem até funciona como recurso cômico, mas ao se alongar demais e se transformar como o grande clímax da produção, sobra muito pouco espaço para as partes realmente mais interessantes, onde só vemos o surgimento delas e suas resoluções.

Felizmente, isso está longe de estragar qualquer desfecho da produção, pois Marcelo Botta volta para o coração de sua história: Betânia e o seu núcleo familiar. Nesta passagem ele resgata e sintetiza as muitas discussões que foram propostas no decorrer do filme. No jantar a luz de velas, em referência o conflito entre modernidade e identidade cultural, a centralização da família como pilar, as trilhas de Bumba-Meu-Boi, a montagem frisando os ciclos e terminando com a família junta em meio as lagoas do Lençóis Maranhenses que resgata a relação entre os nativos com a natureza.


Betânia | Poster Filme: Betânia
Elenco: Diana Mattos, Ulysses Azevedo, Nádia de Cassia, Caçula Rodrigues, Michelle Cabral e Tião Carvalho.
Direção: Marcelo Botta
Roteiro: Marcelo Botta
Produção: Brasil
Ano: 2024
Gênero: Drama
Sinopse: Betânia é uma matriarca de 65 anos de uma grande família. Depois da morte de seu marido, suas filhas a convecem a voltar para a aldeia onde Betânia nasceu e o resto de sua família ainda vive, na beira do parque nacional dos Lençóis Maranhenses.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: –
Streaming: Indisponível
Nota: 8,0 

*FILME ASSISTIDO NO FESTIVAL GUARNICÊ DE CINEMA NO MARANHÃO*

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