CRÍTICA – BIXA TRAVESTY

CRÍTICA – BIXA TRAVESTY

Acho que a grande mídia esqueceu, mas ainda estamos no mês de Orgulho LGBTQIA+. Nesse mês, revisitei alguns filmes que, para mim, retratam de maneira ímpar algumas dessas siglas. Um deles, o mais potente, foi o Bixa Travesty, de 2019. Documentário tão grandioso que abrilhantou e ganhou o Festival de Berlim. Quem diria, não é mesmo? Teve travesti ganhando prêmio em Berlim, sim! 

O centro desse documentário é a multiartista Linn da Quebrada, ou Lina Pereira. Ele traz imagens de shows, conversas cotidianas, falas diretas de Linn com a câmera e performances e intervenções artísticas em ruas, banheiros e todos os lugares que seu corpo quis ocupar. Na maior parte das vezes, Linn está acompanhada da sua até então amiga Jup do Bairro, também talentosíssima. Linn e Jup protagonizam conversas sábias sobre quem são, o que querem ou não ser e como seus corpos são percebidos e atravessados pelas questões sociais. Afinal, seus corpos são políticos, mesmo que paradas. Elas parecem já ter refletido sobre isso muitas e muitas vezes. E é doloroso pensar sobre tudo, claro, mas elas fazem ser mais leve através do humor que só a cumplicidade das duas é capaz de ter.  Elas brincam com as palavras, levando-as ao feminino e fazendo trocadilhos instigantes. Elas jogam com a ideia de que gênero não é nada além de performance e prática. Só percebemos o gênero quando ele é feito, desempenhado. Ele não existe em outro lugar além do desempenho, que serve para definir e manter identidades.

O corpo é muito presente ao longo do filme. Seja em conversas, no palco ou em performances mais íntimas. Linn fala sobre como seu corpo é e como ele faz dela o que ela é. Para se identificar como mulher, ou como bixa travesty – segundo Linn – é obrigatório fazer redesignação sexual? Ela precisa mesmo colocar silicone para parecer “mais feminina”? Isso tudo é bem impositivo, no fim das contas. A artista, inclusive, performa expondo e manuseando seu pênis e seu ânus como forma de valorização de seu corpo. O que lembra um texto da escritora e artista visual Jota Mombaça chamado “Pode um cu mestiço falar?” em que ela retoma o texto “The Mask”, de Grada Kilomba. Kilomba tem uma perspectiva que diz que o regime escravocrata produziu uma organização em que a boca seria um lugar de tortura e de não-fala. Nesse sentido, para Mombaça, a norma da heterossexualidade compulsória determinou o cu como lugar de não-prazer e excreção, havendo uma territorialização sem justificativa do corpo, reduzindo a capacidade de experimentação com esse órgão e possibilitando a manutenção do gênero como ideal regulatório. Afinal, o ânus é um órgão que todos têm, então ultrapassa a diferença sexual binária. Reconhecer o corpo pelo cu, assim como Linn faz em uma de suas performances, é não saber se um corpo é masculino ou feminino. Seu corpo tem como matriz a contradição. E é muito louco pensar nesse sistema sexo-gênero, em que a genital produz um sujeito (ex: se tenho pênis, sou homem) e, assim, deve-se seguir as normas desse gênero. Acho que esse é o grande debate de Bixa Travesty, principalmente quando Linn se diz “terrorista de gênero”. Ela brinca com esse treinamento. “Fala grosso”, “senta que nem mocinha”. Se esses comportamentos fossem naturais, como comer ou dormir, não precisariam ser reforçados.

Esse documentário é histórico e arrebatador. Desde as músicas tocadas do álbum Pajubá tocadas por Linn e Jup – destaque para A Lenda, em que diz “Eu tô bonita?/ Tá engraçada /Eu não tô bonita?/ Tá engraçada/ Me arrumei tanto pra ser aplaudida/ mas até agora só deram risada”, que fala sobre os ajustes sociais para se adaptar ao meio heteronormativo que não aceita corpos diferentes -, que trazem sonoridade aos seus anseios e pensamentos, às reflexões ali propriamente verbalizadas. Ao meu ver, ele é essencial para entendermos gênero, performatividade de gênero e papéis de gênero na sociedade. Ele é obrigatório. Ele pode ser um pouco escandalosas para muitos. Muitos que se dizem apoiadores da causa ou que até fazem parte da sigla, mas que escondem preconceito ou ainda reproduzem certas opressões que somos o tempo todo reiterados. Ele faz um trabalho de desestabilização da posição hegemônica que se nomeia de forma invisível como “norma”. Essa é realmente uma obra de dar Orgulho por completo. 

Filme: Bixa Travesty
Elenco: Linn da Quebrada, Jup do Bairro, Liniker, As Baías
Direção: Claudia Priscilla e Kiko Goifman
Roteiro: Claudia Priscilla
Produção: Brasil
Ano: 2018
Gênero: Documentário
Sinopse: O corpo político da cantora transexual negra Linn da Quebrada é a força motriz desse documentário que a captura em sua esfera pública e privada, ambas marcadas não só por sua presença de palco acachapante mas também por sua incessante luta pela desconstrução de estereótipos de gênero, classe e raça.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: FiGa Films / Arteplex Filmes /Spcine
Streaming: Globoplay
Nota: 10

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