O diretor Kiyoshi Kurosawa, de filmes como A Cura (1996), Pulse (2001) e tantos outros, em um vídeo de agradecimento pelo fato de seu mais novo filme, Cloud (2024), abrir o 14º Olhar de Cinema, deu aos espectadores uma ideia do que esperar deste longa que foi a indicação do Japão ao Oscar/25 para a categoria de Melhor Filme Internacional – categoria vencida pelo filme brasileiro Ainda Estou Aqui. Neste breve contato, ele fez questão de elevar sua obra, bem como responsabilizar o ator Masaki Suda por tal sucesso. Para Kurosawa, Suda traz camadas ao protagonista que nem o próprio diretor conseguiu construir em seu texto.
Kurosawa brinca com as percepções do espectador quando constrói um filme com mais de um gênero e os pontua em cada ato do filme. Começa com um drama social, no qual assistimos o personagem Yoshii (Masaki Suda) comprando equipamentos por um preço abaixo do preço de custo e fazendo sua revenda online, na qual a venda de apenas um equipamento cobriu o seu gasto com o lote inteiro. Yoshii pertence a uma camada social rasteira na cidade de Tóquio. Mora em um pequeniníssimo apartamento e sua ocupação principal é dentro de uma fábrica de roupas, sendo mais uma mão-de-obra barata servindo aos lucros do patrão em uma sociedade dominada e marcada pelo capitalismo.
Aos poucos, o diretor vai incorporando elementos de suspense. Em um diálogo entre Yoshii e seu amigo Sr. Muraoka (Masataka Kubota), ficamos sabendo que um conhecido de Yoshii foi preso por revender ingressos – mas que poderia ser qualquer produto – a preços abusivos. E, em outras cenas, o Kurosawa vai construir uma certa tensão como se alguém o estivesse seguindo, o observando e até querendo lhe fazer algum mal, como quando ele cai de moto ao ver que existia um fio de aço esticado no meio da rua. E este é o momento mais expositivo, pois até então existia apenas uma sugestão que parecia ser muito mais pelo medo de Yoshii ser pego por saber que suas práticas de revenda nem sempre eram “lícitas”.
Quando Yoshii, junto com sua namorada Akiko (Kotone Furukawa), deixam Tóquio para trás e vão morar em uma casa bem maior à beira do lago, o suspense então toma conta do filme. Neste momento, novos personagens entram na trama, como o jovem que vira seu assistente na empreitada digital, Sano (Daiken Okudaira). E o que até então tinha ficado somente na sugestão, aqui já começa a ser palpável, como na cena em que jogam uma peça de carro pela janela do quarto de Yoshii no meio da madrugada.
Importante pontuar que, mesmo nestes momentos, ainda que Yoshii esboce alguma reação de temor, ele sempre se estabiliza em poucos segundos e torna a se demonstrar como alguém inabalável. Essa frieza em seu comportamento é repetidamente demonstrada pelo diretor quando mostra seu protagonista se aproveitando da necessidade de um casal de idosos para conseguir comprar um produto bem mais barato no começo do filme ou quando, depois de revender estes produtos por preços extremamente inflacionados, checa sua conta e percebe os milhões de Ienes que nunca estiveram lá antes.
Em uma live do Club dos Qu4tro, na qual o filme debatido foi a animação Princesa Mononoke, falávamos sobre como as animações japonesas tinham em seus personagens muito mais do que o reducionismo do bem e do mal. Em Cloud isso é percebido também. Embora Yoshii saiba que esteja se aproveitando de certas situações, por vezes até enganando, ele está em uma luta contra um sistema que não cansa de colocá-lo para baixo. Sua namorada Akiko sofre, provavelmente, do sonho de ter mais do que um dia poderá, de fato, conquistar. É uma refém do consumo. Há, de fato, outros personagens que são transparentes e que a maldade os domina, mas não é assim com o protagonista; e, nesse ponto, tendo a concordar com Kurosawa quando elogia o ator por conseguir entregar um personagem nebuloso.
Se nos dois primeiros atos, Kurosawa leva com extrema seriedade tudo o que constrói, ele abre mão completamente desse tom quando o filme envereda pela ação, apresentando nos minutos finais uma sequência de tiroteio em que cada morte tem um senso cômico, sendo a mais afetada e exagerada a do personagem mascarado. Acredito que, para alguns, tal virada no sentido do filme possa incomodar, mas julgo acertado, ainda mais quando vemos o tom fantasioso da cena final do filme.
Cloud é eficiente em mostrar a realidade da juventude japonesa com suas preocupações de futuro pautadas, evidentemente, pelo viés financeiro. A utilização dos espaços fechados, como os minúsculos apartamentos dos personagens em Tóquio, em contraste com o plano aberto, quando Yoshii já se encontra em uma região mais afastada, também valida essa ideia de saturação que o diretor tem de Tóquio – e que talvez nem seja apenas de Tóquio que ele esteja falando. Porém, o que chama mais atenção é a destreza do diretor em manipular nossas sensações passando pelos diversos gêneros e abrindo mão da seriedade que marca boa parte do filme para, no momento final, se utilizar do humor como uma tentativa de escapar da crueldade da violência vista nas últimas cenas. A 14ª do Olhar de Cinema abre muito bem o seu festival. Que os próximos dias possamos experimentar das mesmas ou mais sensações provocadas por Kurosawa em seu filme Cloud.
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Filme: Kuraudo (Cloud – Nuvem de Vingança) Elenco: Masaki Soda, Kotone Furukawa, Daiken Okudaira, Amane Okayama, Yoshiyoshi Arakawa, Masataka Kubota Direção: Kiyoshi Kurosawa Roteiro: Kiyoshi Kurosawa Produção: Japão Ano: 2024 Gênero: Drama, Suspense, Ação Sinopse: Revendedor de produtos online, Yoshii se vê envolvido em uma sequência de eventos misteriosos que ameaçam sua existência. Classificação: Indisponível Distribuidor: O2 Play Streaming: Indisponível Nota: 7,5 |