CRÍTICA – CORAÇÃO SELVAGEM

CRÍTICA – CORAÇÃO SELVAGEM

Nos primeiros cinco minutos de filme acompanhamos o personagem de Sailor (Nicholas Cage) com sua namorada Lula (Laura Dern) saindo de um salão de festas muito chique, estabelecendo nosso casal de protagonistas que imediatamente é interrompido em seu andar por um conhecido de Sailor que denuncia que foi pago por Marietta (Diane Ladd) mãe de Lula para executar Sailor. Sailor reage violentamente se protegendo da faca que o assassino coloca em mãos, matando o mesmo com uma explosão de socos, pontapés e estourando a cabeça do executor, enquanto a mandante do crime observa tudo ao topo da escadaria, tudo isso acompanhado de uma trilha sonora de heavy metal ensurdecedora que reflete a explosão interna de emoções do protagonista. O contraste entre ambas as cenas: momentos do casal em um ambiente romântico clássico comparado com a brutal morte causada por Sailor é quase um tapa na cara para despertar o público. Nesse longa-metragem são cortadas as asas contemplativas (apesar das belíssimas montagens), mas é priorizado uma adrenalina, uma certa insanidade e inflamação de todo tipo de emoção (priorizando principalmente a violência e o sexo), guiando-nos através de uma narrativa insana e de poucos respiros (ou melhor, de poucos tragos), além de explícitos comentários sobre condições sociais e psicológicas da sociedade. Coração Selvagem

Fogo. Chama. Queimar. Ardência. Fervor. Incêndio. Combustão. Inflamação. A relação de Coração Selvagem com o fogo é indissociável, afinal sua narrativa rotaciona ao redor das inflamações do próprio coração e seus fervores sentimentais/emocionais. Essas paixões são elevadas ao máximo, entrando na linha tênue entre a expressão do ardor de desejo e a pulsão pela violência e brutalidade. Esse é o pilar central que dá norte para o conjunto temático e estético do longa-metragem, formulando até mesmo as caricatas atuações do elenco que é vasto, criativo e cheio das bizarrices belíssimas nas composições de personagens de David Lynch.

Contamos com Nicholas Cage (Sailor); Laura Dern (Lula); William Dafoe (Bobby Peru); Isabella Rossellini (Perdita Durango); Diane Ladd (Marietta Fortune); Harry Dean Stanton (Johnnie Farragut); J.E. Freeman (Marcelo Santos); Grace Zabriskie (Juana Durango); Jack Nance (00 Spool); Sherilyn Fenn (Garota no Acidente) e Sheryl Lee (Glinda) etc. que mesmo alguns com poucos momentos de tela conseguem deixar suas impressões graças a caricatura de suas caracterizações externas e internas. Antes de focarmos em nossos protagonistas, é bom realçar as outras participações, afinal até mesmo os participantes de fundo com nenhuma fala ou somente um breve momento de aparição captura nossa memória, captura as sensações por refletir visuais característicos exagerados de uma maneira original a ponto de não ficar “estranho” pejorativamente, tornando-se qualidade o que poderia ser considerado defeito em outros filmes. Bobby Peru, Marcelo Santos e Juana Durango e Perdita (sua filha) possuem visuais estratosfericamente caricatos, porém conquistam com seu visual único, que exaltam suas especificidades e características. Nas obras como um todo de David Lynch sempre há esse ar de bizarrice, estranheza e não naturalidade nos comportamentos de suas personagens, porém são contidas em diversos filmes ou possuem seus momentos de brilhantismo em exaltar essa estranheza. Coração Selvagem possui um elenco tão excêntrico que consegue competir com as estranhezas de Twin Peaks (1990-2017) que também tem seu elenco excêntrico e carismático, nos conquistando por serem pessoas que agem exageradamente em suas características. É o famoso vale do estranho-familiar e problematizar é perder os sentimentos, é desviar da proposta do lúdico, afinal não é o propósito aqui, prender-se a um realismo de retratação da “normalidade”, seja lá o que isso signifique em uma sociedade tão multifacetada.

Logo, Marcelo Santos é a presença do chefe de crime organizado, em todos seus trejeitos, visuais e fala. A cidade de New Orleans é realçada em todos seus exageros sensuais. O submundo de uma pequena cidade do Texas é elevado ao velho-oeste contemporâneo em que poucos cidadãos habitam e cada um é mais estranho do que o outro. Os atendentes dos hotéis são velhinhos, todos eles, com suas lentidões. Johnnie é o padrasto passivo, sem muita reação que faz tudo pela mulher sem exibir ressentimentos e tomado por inseguranças de perder a mulher. Marietta é a mãe controladora ao extremo, com gritos e esperneios exagerados com visuais de uma princesa, de uma dama de dias antigos que vive em seu reinado em que perdera o controle da sua sucessora para aquele que considera um marginal, fora do ideal que considera para sua filha (apesar que ao longo do texto perceberemos outros milhares de problemas nessa relação). Basta ver as imagens e trechos de qualquer momento do filme que essa característica é impossível de não ser percebida.

Sailor e Lula (nossos protagonistas) são a melhor representação desses exageros e símbolos desse fogo que permeia toda a temática e estética do filme. Não há nenhuma cena em que seus visuais não gritam seus sentimentos e singularidades internas. Como o próprio Sailor diz quando questionado sobre sua jaqueta de couro de cobra: “ela é símbolo da minha liberdade e individualidade”. Ela carrega a identidade de Sailor junto de si tão quanto as diversas roupas utilizadas por Lula (que ressalta todas as características de sua sensualidade que são extremamente bem incorporadas por Laura Dern que se entregou por inteiro a personagem em praticamente todos os momentos). O equilíbrio entre o casal (e a química entre Nicholas Cage e Laura Dern) realçam essa paixão, essa sedução, esse sexo carnal e prazer exaltados, seus respiros, seus sentimentos que inundam um pelo outro se manifestando em diversas cenas de sexo que beiram ao suor, carnalidade, desejo, possessão, entregues um ao corpo do outro. Laura Dern é a principal responsável por exaltar essas características, havendo muita coragem em toda exposição que faz do próprio corpo ao longo do filme e em suas maneiras de tratar Lula, criando uma identidade visual (performática e visual) que conquista os olhares, que exalta toda essa carnalidade bestial que anseia por Sailor. A versatilidade da atriz (se fechássemos a análise de sua carreira somente na filmografia de Lynch já valeria a joia absurda de talentos que ela possui) é absurda quando comparamos com a caracterização de sua personagem Sandy em Blue Velvet (1986) que é a garota inocente, ingênua, toda bem-vestida no estilo mais padrão garota branca de classe média estadunidense. Nicholas Cage é aproveitado ao máximo, entrando na esfera de seus personagens excêntricos (em que por ser tudo exagerado combina perfeitamente com todas as loucuras que já vimos o ator interpretar ao longo da carreira). Essa dupla combina muitíssimo bem, apaixonados, violentamente domando o corpo um do outro e se libertando das correntes de qualquer coisa que vise censurar essa chama da paixão. Como eles próprios se denominam em diversos momentos ao longo da narrativa: possuem um Coração Selvagem.

O conflito aqui é simples: Marietta por medo de perder a filha Lula para Sailor entra em contato novamente com seu antigo amante Marcelo Santos, que parece ser um criminoso bem influente dotado dos recursos necessários para planejar a execução de Sailor e resgatar Lula desse marginal. Acompanhamos o casal em uma espécie de road movie viajando pelo Sul dos Estados Unidos com o objetivo de chegar na California fugindo de toda essa realidade em busca de liberdade para poderem amar um ao outro livremente. Ao longo dessa viagem haverá muita violência, sexo e cigarros… (todos os personagens do longa-metragem fumam muito e em todas as cenas praticamente). Nesse frenesi narrativo, o cigarro é a chama da calmaria, do trago, do intervalo – seja entre as cenas de ação e violência, seja para o entre uma relação sexual ou outra entre Lula e Sailor. O cigarro é esse símbolo de sedução e a montagem do filme realça ao máximo cada tragada e momento em que ele é aceso – pode parecer problemático nos dias de hoje e o próprio diretor faleceu por decorrências do tabagismo, mas não podemos censurar que ele considerava uma das coisas mais sensuais e prazerosas em sua vida – e esse pensamento pessoal do diretor é refletido no longa-metragem. O cigarro faz parte da composição de diversas cenas e dos intervalos de respiro entre as loucuras, bizarrices e estranhezas que são testemunhadas na narrativa.

Mas, é uma narrativa teoricamente simples, pois diversos elementos a transformam em uma teia de ramificações complexas e motivações sombrias (e simultaneamente banalizadas). O longa-metragem optando por uma cadeia de efeitos consequências que consideram sempre eventos passados (que vão de pouco em pouco nos sendo revelados através de flashbacks) descobrimos que Marietta tentou conquistar Sailor na mesma festa de início do longa-metragem e é negada sua aproximação, por ela estar bêbada joga medos e frustrações na cara de Sailor (em que descobrimos seu passado enquanto motorista de Marcelo Santos) e que ele sabe de fatos passados que não seriam interessantes de Lula descobrir sobre sua própria mãe. Marietta planejou e executou a morte de seu antigo marido (pai de Lula) com Marcelo Santos. Sailor testemunhou o dia do grande incêndio da casa em que o pai de Lula morreu “acidentalmente” segundo as versões oficiais. Ele sabe de determinadas verdades (e nunca teve coragem de falar para Lula esses eventos). Daí discorre o anseio de Marietta de desaparecer com Sailor, pois ele simboliza não só o afastamento da filha, mas também o encontro dela com as verdades obscuras do passado de sua própria família.

Esses detalhes que são entregues do passado mostram toda a caricatura violenta que está sendo construída da realidade narrativa do longa-metragem. Possui elementos caricatos que geram certa comicidade, mas ao mesmo tempo existem diversas cenas em que conteúdos extremamente pesados são apresentados e com certa irrelevância, normalidade, usualidade. É uma violência comum. Certo diálogo Lula expõe que foi estuprada pelo próprio tio (não testemunhamos o momento e ai advém uma característica incrível de David Lynch em seus longas – nunca testemunhamos de fato uma violência extrema, apesar de muitas vezes existirem momentos perturbadores, não há gratuidade na exposição desses eventos, trabalhando com delicadeza envolvendo essas temáticas de abuso sexual que permeiam suas obras. Lula comenta esse fato, é mostrada a cena logo após a realização do ato, ficamos horrorizados, porém ao retornar é algo que somente passa, se esvai, sem reações drásticas de Sailor em relação ao que lhe foi relatado. Pode parecer mal-feito de primeira impressão, porém, essas reações acontecem ao longo do filme inteiro, com momentos de reação de Lula (personagem que mais tem conexão ainda com algum sentimento de humanidade e empatia por outros) nesse Estados Unidos distorcido, corrompido e banhado em sangue. Lula em determinado momento dirigindo o carro liga o rádio enquanto Sailor dorme no banco traseiro, busca ouvir música, mas somente sintoniza em rádios de noticiário que repassam atrocidades que foram acometidas – parecendo muito os noticiários televisivos atuais que lucram com as audiências assistindo tragédias atrás de tragédias – e tem uma crise de pânico, até mesmo comentando que o noticiário parece a “Noite dos Mortos-Vivos” (1968).

Grita para Sailor achar uma música rápido antes que ela surte de vez e ele sintoniza em uma rádio que está tocando um heavy metal que toma completamente o som do filme, ensurdecendo esses pensamentos e reflexões das personagens. Ele revoltado pula, chuta os ares, dá golpes explanando uma revolta contra um inimigo invisível, enquanto Lula dança, entregando-se ao ato de não refletir, se aproximando posteriormente ao corpo de Sailor, beijando-o com o enquadramento focando em um pôr-do-sol, lembrando-nos que na natureza ainda existe certa beleza. A representação do heavy metal na trilha sonora, constante em momentos de explosão, simboliza essa explanação total da racionalidade, do não pensamento, incorporando simultaneamente o desligamento desse pensamento crítico e colocando externamente toda a revolta pelos instrumentos, esse ato de constante rebeldia e ódio que explodem na nossa rotina e que muitas vezes precisamos conter ou agir com certo desinteresse contido. Angelo Badalamenti está de volta, trabalhando muito bem pela composição das músicas, ambientando nas seduções, nos momentos eufóricos, de tensão e violência. David Lynch mantém as constantes manifestações de músicas em que é entusiasta, principalmente clássicos da década de 1950/1960 românticas, tal qual Blue Velvet, mas dessa vez o personagem de Nicholas Cage as canta, embalando esses momentos de afago musical e suas declarações ultrarromânticas com Lula. A música possui esse papel quase de personagem nas obras de David Lynch, é seu modus operandi criativo.

Destaque para o incrível momento em que Sailor e Lula dirigem pela estrada a noite ouvindo Wicked Game (Chris Isaak). Vale cada segundo de contemplação com o encaixe perfeito de fotografia, edição e trilha sonora.

 

 

Outro ponto de crucial relevância é o elemento de paródia em torno da obra o Mágico de Oz (tanto livro quanto filmes estão impregnados no imaginário popular). A realidade narrativa é ambientada nos Estados Unidos, porém o tempo inteiro nos deparamos com as personagens referenciando o universo de o Mágico de Oz, a própria Lula é uma versão completamente distorcida de Dorothy, que sofreu de todos os males abandonando por inteiro a ingenuidade de garota inocente. Sailor comenta que não entende em que momento a estrada de tijolos amarela foi destruída ou desconfigurada. A Bruxa Má e a Bruxa Boa aparecem constantemente no filme (às vezes obviamente, às vezes através de pequenos detalhes, como os sapatos de Marietta). O elemento onírico, então, mesmo que em um ritmo mais frenético, continua presente e distorcendo a realidade através de exageros para tecer comentários sobre a sociedade. Quais comentários? A violência está em todos os momentos, ela permeia cada tecido da história, vive entre os tragos dos cigarros acesos, em relatos absurdos que beiram ao cômico-trágico, em que faz pouco caso de coisas que em qualquer filme focado em uma verossimilhança realista de reações qualquer personagem juraria vingança aos próprios deuses. Não é o caso aqui, é banalizado, afinal, também é banalizado para nós próprios testemunhas da realidade diária em que todos os dias nos noticiários os maiores absurdos são relatados, assistimos, comentamos e logo após deitamos nossas cabeças tranquilamente nossas camas.

A escolha de O Mágico de Oz é simbólica para essa representação dos Estados Unidos, afinal o livro de L. Frank Baum publicado em 1900 faz parte da construção do imaginário ficcional da literatura norte-americana. Essa produção que gira em torno da inocência escapista de uma criança que vai para outro mundo, em que a magia vive pelos cantos, com criaturas sobrenaturais e mágicos que no fim não possuem nada de especial. A verdade por trás de uma teia de mentiras. Há uma magia especial em O Mágico de Oz que é uma mensagem positiva, uma visão de que a magia perdura mesmo quando retornamos a nossa realidade (no caso quando Dorothy volta para casa de seus tios), uma realidade mundana e brutal, porém, que ainda possui esperança. O encerramento de Coração Selvagem é uma mensagem positiva ainda, afinal, a Bruxa Boa aparece direcionando a tomada de decisões corretas para Sailor correr até Lula (do jeito mais exagerado possível digno dos filmes de romances mais dramáticos) e cantar a música que comentara ao longo do filme que só seria cantada para sua esposa. É digno de boas risadas pela caricatura de encerramento (Sailor com o nariz todo inchado e quebrado por conta de uma briga minutos antes) em que o amor vence no final. Há uma mensagem boa, um otimismo mesmo após tantas atrocidades testemunhadas. Eles possuem um Coração Selvagem, mas são fiéis um ao outro, dedicam-se mesmo quando afastados nesse amor fervoroso que queima e anseia por estar ao lado daquele que você deseja passar o restante da sua vida ao lado.

Talvez o único ponto negativo que posso apontar para um espectador que deseja nós bem amarrados pelos fios narrativos que são apresentados é a não conclusão de muitos pontos abertos. Digo talvez, pois, David Lynch nunca se preocupa muito com o fim, mas sempre com os meios. Sua narrativa não é estruturada nesse desencadeamento de ações que ficamos boquiabertos com plot twists de revirar os pensamentos ou grandes reflexões que saímos com os espíritos cheios de perguntas. As questões são simples, apesar da já comentada cultura de vídeos ensaios buscando explicar minuciosamente cada frame de seus longas-metragens. O que é valorizado é a estética, a maneira que é transposto para nós aquilo que muitas vezes foi sonhado e imaginado. Então, você que me acompanhou até aqui, saiba não gerar expectativas de grandes arcos narrativos do vasto elenco que instiga curiosidade em saber mais sobre. Eles estão para aquele momento, estão para movimentar onde deve ser movimentado e depois preservados em nossa memória. Vai de sua decisão julgar isso enquanto qualidade ou defeito, apesar de nem entrar nesse tipo de mérito. Vale a experiência única e singular que Coração Selvagem e todos os seus outros longas-metragens geram em nossos corações e mentes…

 

FilmeWild at Heart (Coração Selvagem) 
Elenco:
Nicolas Cage, Laura Dern, Willem Dafoe, Crispin Glover, Diane Ladd, Isabella Rossellini, Harry Dean Stanton, John Hurt. 
Direção
David Lynch
Roteiro
David Lynch, 
Produção:
 Estados Unidos
Ano
1990
Gênero
Crime, Romance
Sinopse:
Dois jovens namorados, Sailor e Lula, fogem da perseguição da mãe dela, numa viagem pelo sul dos Estados Unidos. Ele tem fixação por Elvis Presley, enquanto Lula tem obsessão por O Mágico de Oz.
Classificação
16 anos
Distribuidor:
The Samuel Goldwyn Company
Streaming
Prime Video
Nota
9,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *