Deadpool & Wolverine é um manifesto (ou vários). Há pouco mais de uma década, um dos meus professores de jornalismo e crítico de cinema incomodou parte da audiência ao dizer que o lançamento de O Hobbit era uma mostra de que homens adultos estavam se recusando a “crescer”. Bem, agora, com o sucesso do terceiro filme do mercenário desbocado da Marvel, parece que o professor estava certo e que os filmes infantis para adultos vieram mesmo para ficar… pelo menos por enquanto.
Em que pese a afirmação, o diretor Shawn Levy e as estrelas Ryan Reynolds (que também assina como um dos roteiristas) e Hugh Jackman não devem ter arrependimentos. A produção, estimada em pouco mais de US$ 200 milhões, arrecadou inacreditáveis US$ 1,3 bilhões mundialmente – pense que se você ficasse parado na esquina, todos os dias, dando US$ 100 para cada uma das 8 primeiras pessoas que passassem, durante 100 anos, ainda não chegaria nem a um décimo do valor que o filme arrecadou.
Ah, e é evidente que um filme ruim não seria capaz de fazer tanto sucesso. Deadpool & Wolverine é divertido e não mede esforços para entregar o que os fãs de quadrinhos mais sonharam ao longo das últimas décadas. Contudo, isso tem um preço e eu ouso me perguntar: será que vale mesmo?
Um universo de maravilhas
Quando Matrix ganhou os cinemas às vésperas da virada do milênio nada mais parecia impossível. Bem, quase nada. No ano seguinte, X-Men daria vida aos mutantes da Marvel e, embora não fosse o primeiro filme de super-heróis a ser feito, abriu as portas para poderes cada vez mais fantásticos. Porém, nem todas as barreiras haviam caído. Os filmes dos alunos do professor Xavier entregavam muito aos fãs, desde que a existência dos mutantes fosse “crível”.
E essa é a palavra complicada. Disparar laser pelos olhos, controlar o tempo, ser basicamente imortal com garras de um material tão inquebrável quanto imaginário e mais uma série de coisas inexistente saídas de mentes criativas precisavam se apresentar como coisa de adulto. A solução? Aparentemente, foi dizer adeus aos uniformes coloridos e até a alguns dos personagens mais caricatos.
E foram necessários mais de 20 anos, uma série de adaptações de propriedades intelectuais da Marvel, contratos milionários com grandes nomes de Hollywood e orçamentos astronômicos para que, finalmente, os sonhos mais molhados do fandom finalmente se materializassem em Deadpool & Wolverine.
Uma longa jornada…
E a existência de Deadpool & Wolverine poderia ser trágica se não fosse intencionalmente – e cansativamente – cômica. De uma forma tosca, a jornada até a realização do filme lembra como movimentos por direitos sociais começam pequenos, com pouca visibilidade, tendo que se contentar com as mínimas vitórias que alcançam, ganhando força com o passar dos anos até conquistar espaço e aceitação suficientes para finalmente ocupar um lugar de relevância, sem precisar esconder mais nada.
Como disse, desde o X-Men de 2000 – não podemos esquecer também o bem-sucedido Blade, que inclusive está entre as várias reverências/referências feitas em Deadpool & Wolverine, ou mesmo os acertos e erros anteriores da concorrente DC – foram longos anos de preparação. Só o famigerado Marvel Cinematic Universe (MCU, ou Universo Cinematográfico Marvel) já envolve mais de 30 filmes divididos em diferentes fases.
…e o que perdemos pelo caminho
Contudo, se a busca pela forma fiel aos quadrinhos de Deadpool & Wolverine emula a saga da luta por igualdade de direitos, o mesmo não pode ser dito sobre a substância. Para simplificar, vamos nos limitar aos X-Men. Nascida na década de 1960, a equipe de pupilos do telepata Charles Xavier é uma alegoria perfeita para grupos de minorias.
É importante frisar que o desenvolvimento de histórias e folclore veio com o tempo, mas, de forma resumida, o gene responsável pelas mutações se manifesta aleatoriamente, leva tempo para que o mutante consiga controlar seus poderes, a sociedade teme e persegue as pessoas que considera diferentes e eles se agrupam para demonstrar orgulho (e revidar a opressão) ou esconder suas mutações.
Quando imaginaram os X-Men, Jack Kirby, Stan Lee e os outros autores envolvidos na produção dessas histórias, ao longo dos anos, certamente não pretendiam ser um símbolo de resistência, mas produções artísticas tendem a extrapolar os limites imaginados por seus criadores. A fagulha estava nas páginas das HQs e isso foi ganhando força década após década, até chegar às publicações mais recentes, que fazem referências diretas a movimentos sociais e a políticos de extrema direita.
E eis que chegamos a Deadpool & Wolverine, que mostra como Ryan Reynolds moveu montanhas para dar aos fãs o que eles queriam. Trouxe seu amigo Hugh Jackman da “aposentadoria” heroica, sacudiu todas as árvores da internet atrás dos desejos não atendidos do fandom de quadrinhos, convenceu figurões a liberarem dinheiro infinito para custear um elenco inacreditável e se entregou ele mesmo à escrita do roteiro, ao lado de Rhett Reese e Paul Wernick, para garantir que tudo estaria de seu gosto – inclusive removendo do caminho personagens/atores que “não agradavam” de alguma forma.
O resultado? Um filme de pouco mais de duas horas que enche os olhos com o visual dos personagens saídos dos quadrinhos, lutas frenéticas, diálogos insanos, piadas sem fim e quebras de quarta parede. Tudo isso com um elenco de nomes como Matthew Macfadyen, Jennifer Garner, Wesley Snipes, Channing Tatum, Chris Evans, Henry Cavill e mais. Absolutamente tudo feito em nome da aparência, da fidelidade visual. E é perfeito, não há do que reclamar nesse aspecto, é como se as páginas da mais bela HQ da era dourada de Chris Claremont e Jim Lee realmente ganhassem vida.
Porém, salvo pela amizade – o famigerado bromance – de Ryan Reynolds e Hugh Jackman ou de Deadpool e Wolverine, não sobra nada. Não por acaso, o filme é classificado por aí como “buddy comedy”, algo como “comédia de compadres” ou coisa parecida. Enfim, muita forma, nenhuma substância. Nada do que os X-Men e demais heróis da Marvel sempre ostentaram orgulhosamente, como a humanização e representatividade que os destacavam da concorrente DC, sobreviveu à jornada para realizar essa ode à estética dos quadrinhos.
Adultos só querem se divertir
Assim, Deadpool & Wolverine é um manifesto à “adultescência” imortal e vazia, aos filmes infantis para adultos, ao super-herói como gênero cinematográfico. Ele se tornou o filme de classificação “adulta” com maior receita na história. Porém, é importante pontuar que um filme não recebe essa classificação por ser difícil de entender. Afinal, vale lembrar que nenhum filme pornô jamais foi avaliado por sua riqueza narrativa e, ainda assim, todos são obviamente para maiores de 18 anos.
Para todos os efeitos, não se trata de um filme ruim. É, sem nenhuma sombra de dúvida, muito divertido. Mas, é um desafio ser capaz de lembrar de detalhes da trama no dia seguinte, justamente porque ela não importa. Se você é do tipo que escolhe filmes esperando por uma mensagem, aqui não há nenhuma ou, pelo menos, alguma que valha a pena. Por mais que deteste o conceito de “desligar o cérebro” para assistir a um filme ou série, essa é a recomendação para Deadpool & Wolverine. Divirta-se, você pode refletir sobre a vida ou a sociedade uma outra hora.
P.S.: Ou talvez não seja bem assim… Há reflexões possíveis em Deadpool & Wolverine. Primeiro, a de que dois homens podem ser amigos tão próximos quanto um casal amoroso sem que isso afete ou desrespeite a sexualidade de ambos. Segundo, a de que talvez uma história em que adultos usam roupas espalhafatosas, ostentem poderes inimagináveis e, ainda assim, tenham que lutar contra a opressão da sociedade seja uma ótima alegoria para adolescentes, mas talvez continuar com elas na idade adulta perca seu efeito. Por fim, honestamente, dado o envolvimento de Reynolds em todo o processo desse filme, Deadpool & Wolverine deveria acender um alerta sobre o que é o ego desse ator. Mas, com tanto dinheiro arrecadado, acho que não vai faltar recurso para pagar a conta do psiquiatra.
Filme: Deadpool & Wolverine Elenco: Ryan Reynolds, Hugh Jackman, Emma Corrin, Matthew Macfadyen Direção: Shawn Levy Roteiro: Rhett Reese, Paul Wernick, Ryan Reynolds Produção: EUA, Reino Unido, Nova Zelândia e Canadá Ano: 2024 Gênero: Ação, Comédia, Super-herói Sinopse: Deadpool & Wolverine encontra Wade Wilson com sua atuação como o moralmente flexível Deadpool deixada no passado até que ele subitamente se encontra em uma luta pela sobrevivência de seu universo, precisando retomar seu uniforme – além de convencer um relutante Wolverine a ajudá-lo. Classificação: 18 anos Distribuidor: Walt Disney Studios Streaming: Disney+ Nota: 7,5 |