CRÍTICA – DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

CRÍTICA – DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Manuel e Rosa são camponeses pobres. Eles têm um pedacinho de terra e umas poucas vacas que estão misturadas com as vacas do Coronel Moraes. Algumas delas, ao beberem água no açude do norte, são picadas por cobra. Ao tentar fazer a partilha do gado, Manuel é surpreendido com a afirmação de que as vacas mortas eram todas dele. Sentindo-se profundamente injustiçado, ele puxa o facão num gesto intempestivo e mata o Coronel. O casal de camponeses precisa fugir para não ser morto também. Essa é a primeira ruptura do filme. Ela se dá tanto no campo da narrativa, uma vez que os dois são lançados abruptamente naquilo que é conhecido como o mundo da aventura; quanto no campo da decupagem/montagem, pois há uma instabilidade ainda mais intensa e fácil de perceber feita de cortes rápidos, montagem fragmentada e descontínua e uma câmera na mão bastante agitada. Ambos contrastam com a estabilidade da câmera e da montagem na cena do Coronel Moraes.

Glauber Rocha tinha apenas 22 anos quando dirigiu “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Uma precocidade impressionante. Apesar da pouca idade, ele mobilizou ali todo o seu repertório cinematográfico e imprimiu uma visão de mundo lastreada de referências políticas à esquerda. Uma visão, portanto, revolucionária que se refletia não só no conteúdo, no discurso do filme, mas principalmente na forma dele.

O neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa transformavam radicalmente o modo de fazer cinema mundo afora. Era um tempo de mudanças profundas e essa novidade chegava com força por aqui. Filmes como “Rio, 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos, claramente inspirado no neorrealismo, já faziam a cabeça de uma parte do público do cinema brasileiro.

Manuel passa a ter consciência de sua condição de oprimido. Adere, primeiro, a Sebastião, inspirado na figura transgressora de Antônio Conselheiro, que enfrentou a recém fundada República Federativa do Brasil na mais sangrenta de todos as guerras ocorridas por aqui, a Guerra de Canudos; e que poderia ter sido evitada com um pouco de diplomacia e entendimento de ambas as partes. Mas acabou prevalecendo a incompreensão e o ódio mútuo que exterminou milhares de pessoas. E muitos animais também. O horror!

Assim como Antônio Conselheiro, Sebastião também é assassinado pelas forças do Estado, simbolizada na figura do enigmático Antônio das Mortes, o matador de aluguel, num conluio entre a igreja católica, o coronelato e administração pública municipal.

Manuel e Rosa são lançados novamente no mundo da aventura, ainda mais radicalizados, numa espécie de transe místico. Encontram o cangaceiro Corisco, outra força transgressora primitiva. Um lunático que deseja acabar com a injustiça e com a fome matando todos os pobres do Brasil. Diferente de Sebastião que tinha a seu favor a força das palavras, Corisco tem a força das armas. Ele é, portanto, mais perigoso e, consequentemente, uma ameaça ainda maior para o Estado, para as forças políticas que controlam o sistema. Não demora muito e Antônio das Mortes, com a ajuda de cego Júlio, sai a caça do cangaceiro e seu novo bando. A morte teatral de Corisco, girando como um pião e caindo de cara no chão depois de um corte abrupto da imagem, libera Manuel e Rosa para sua fuga rumo ao mar.

Em sentido bastante genérico, pode-se dizer que “Deus e o Diabo na Terra do Sol” tem uma estrutura de montagem dialética, que alterna momentos em que as ações e os diálogos têm ritmo mais lento, rarefeito, contrastando com outros em que a montagem fragmentada acelera a ação de modo agressivo e perturbador. É um filme cujo objetivo último é fazer pensar, refletir a respeito dos contrastes e contradições de um país insistentemente atrasado e desigual.

A fuga para o mar em linha reta pode ser entendida como o desejo de concretização de uma transformação radical da sociedade sugerida pela metáfora cantada por cego Júlio na qual o sertão viraria mar e o mar se transformaria no novo sertão. Uma convulsão que mudaria a estrutura política e social do país de uma vez por todas, trazendo justiça e igualdade para todos, supostamente. Um pequeno problema apenas: seria uma nova Canudos com ainda mais sangue derramado. E põe sangue nisso!


Filme: Deus e o Diabo na Terra do Sol
Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos, Maurício do Valle, Lídio Silva
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Glauber Rocha e Walter Lima Jr
Produção: Brasil
Ano: 1964
Gênero: Drama
Sinopse: Manuel (Geraldo Del Rey) é um vaqueiro que se revolta contra a exploração imposta pelo coronel Moraes (Mílton Roda) e acaba matando-o numa briga. Ele passa a ser perseguido por jagunços, o que faz com que fuja com sua esposa Rosa (Yoná Magalhães). O casal se junta aos seguidores do beato Sebastião (Lídio Silva), que promete o fim do sofrimento através do retorno a um catolicismo místico e ritual. Porém, ao presenciar a morte de uma criança, Rosa mata o beato. Simultaneamente Antônio das Mortes (Maurício do Valle), um matador de aluguel a serviço da Igreja Católica e dos latifundiários da região, extermina os seguidores do beato.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Produções Cinematográficas Herbert Richers, Copacabana Filmes, Versátil
Streaming: Itaú Cultural Play
Nota: 8,5

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