Emilia Pérez (2024), dirigido por Jacques Audiard, é um musical dramático que conta a história de um poderoso chefe do narcotráfico que, em busca de redenção, decide abandonar seu império criminoso e mudar de vida, se tornando a mulher que sempre sonhou ser. Enquanto tenta construir um novo começo, Emilia (Karla Sofía Gascón) enfrenta os perigos de seu passado sombrio e os desafios de sua nova identidade. Ela conta com a ajuda de uma advogada ambiciosa (Zoë Saldaña) e enfrenta confrontos emocionais com uma figura marcante de sua vida anterior (Selena Gomez).
Emilia Perez e o teatro
Audiard absorve muito de sua encenação do teatro. Na Grécia Antiga, o teatro começou a tomar forma como um ritual em homenagem ao deus Dionísio. Uns bons séculos depois (perpassando a ascensão e queda de diversos impérios além do grego), as óperas iniciaram sua tradição na Europa. Passa-se o tempo, os musicais no teatro dão indícios de surgimento e persistem até conquistarem um espaço muito maior (como a Broadway) para, por fim, chegarem em Emilia Pérez.
Obviamente, qualquer musical no cinema também é decorrente desse trajeto histórico. Entretanto, Emilia Pérez faz questão de deixar isso claro em sua mise-en-scène – termo para designar a construção cenográfica de um filme –, como, por exemplo, em momentos nos quais um personagem começa a dançar e, então, as luzes do cenário escurecem enquanto a pessoa é iluminada. O diretor frequentemente busca evocar na cena uma ideia semelhante a de palcos montados, com iluminação dramática e coreografias, que parecem menos preocupadas em parecer “naturais” e mais em capturar a essência emocional e simbólica de cada cena.
Manipulação formal
O filme de Audiard é uma obra que claramente não tem medo de romper a ilusão cinematográfica tradicional. Característica especialmente percebida durante os números musicais, em que os personagens frequentemente interagem com o espaço de maneira simbólica ou abstrata. Essa abordagem sublinha o aspecto performático da música no filme, enfatizando que cada número é uma janela para a psique dos personagens.
Tal aspecto não surge apenas a partir da evocação da linguagem teatral. Mesmo nos segmentos onde essa referência não é tão evidente, os personagens interagem com o espaço ao seu redor de modo significativo. Em uma cena específica, por exemplo, ao cantar, a personagem de Selena Gomez abre a câmera frontal de seu celular; ao fazer isso, nós a assistimos através daquela lente. É uma escolha formal de Audiard que enfatiza simbólicamente a maneira como Jessi se sentia aprisionada naquele momento. Ao mesmo tempo, na imagem, sua figura literalmente está confinada em uma tela. Por consequência, a câmera frontal se revela uma metáfora poderosa para o confinamento e a claustrofobia que a personagem sente, tanto em relação ao mundo ao seu redor quanto às suas próprias escolhas.
Desse modo, é como se a música fosse tão forte que ela modificasse a própria forma do filme. As notas musicais tomam rédea e definem a câmera usada, a posição dos personagens, o cenário e muito mais. Os sons e as vozes se unem às danças e às expressões para orquestrar a harmonia que conduz a encenação do filme. Os tons da música revelam não só detalhes sobre seus personagens, mas também a maneira com a qual a linguagem cinematográfica é articulada.
O coletivo em Emilia Pérez
Em outros momentos, Emilia Pérez move sua ótica de uma perspectiva pessoal e emocional dos personagens para uma visão coletiva. Ou seja, muitos dos números musicais são cantados em coro criando uma atmosfera de força comunitária. Há uma sensação de que cada voz importa, de que cada personagem, por mais marginalizado ou esquecido que seja, encontra na coletividade um lugar de pertencimento. Há, então, uma espécie de celebração de comunidades marginalizadas, especialmente latinas – sobretudo ao pensarmos no filme em um contexto de hegemonia hollywoodiana e eleição do Trump – e LGBTQIA+
Uma das principais tramas do longa é a luta do povo mexicano para resolver as mortes e injustiças causadas pelo narcotráfico, uma constante sombra na vida de Emilia. Nesses momentos, o coro funciona como uma forma de resistência e denúncia. Surge, então, um senso de união palpável, como se a música fosse o fio que mantém essas pessoas conectadas e resilientes diante da brutalidade do mundo. Esse enfoque no coletivo é ampliado pela própria estrutura do filme. Em vez de se concentrar unicamente na perspectiva de Emilia, o longa cede espaço a outras vozes e olhares. Dessa forma, é perceptível a existência de um equilíbrio entre os personagens que reflete a ideia de que a força está na multiplicidade: cada história individual é única, mas juntas elas compõem algo ainda mais poderoso.
Estética caricatural
Contudo, acaba soando paradoxal que um filme, que formalmente denota tanta preocupação com tais comunidades e com um senso de coletivo, revele uma certa caricaturização destes mesmos recortes demográficos. Falta um quê de sensibilidade em Audiard ao abordar esses grupos. Assim, boa parte da representação marginalizada acaba caindo em estereótipos e conceitos. O resultado final, na maior parte, é quase como uma caricatura; uma mera estética daqueles povos.
Emilia Pérez (2024) é mais do que um musical sobre crime: é uma celebração da vida em todas as suas complexidades. É um filme que entende que a música tem o poder de unir, de transformar e de dar voz. Embora falte certa ternura na forma como aborda e encarna algumas de suas temáticas, a intensidade de sua abordagem cinematográfica faz com que estes mesmos temas se apresentem com força própria.
Filme: Emilia Pérez Elenco: Karla Sofia Gascón, Zoë Saldaña, Selena Gomez, Adriana Paz, Edgar Ramírez Direção: Jacques Audiard Roteiro: Léa Mysius, Jacques Audiard, Nicolas Livecchi, Thomas Bidegain Produção: Bélgica, Estados Unidos, França Ano: 2024 Gênero: Crime, Drama, Musical Sinopse: Emilia, uma poderosa chefe do narcotráfico, decide deixar seu passado sombrio para trás e buscar redenção. Classificação: 16 anos Distribuidor: Netflix Streaming: Netflix Nota: 7,0 |