Eis o filme de David Lynch que fez eu emanar a frase que constantemente quando falo sobre o diretor retorna a se manifestar: “se ele fosse um diretor que fizesse diretamente terror eu ficaria verdadeiramente aterrorizado”. Desde Eraserhead é visível uma visão bem digna de respeito para representar pesadelos na mídia audiovisual. Ao longo dessa jornada por David Lynch, uma pendência é visível: sua série icônica (e meu amor eterno no coração) Twin Peaks (1990-2017) e o filme Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer (1992) possuem elementos de terror e horror que quando se manifestam, senti calafrios percorrerem o corpo por inteiro. David Lynch possui talento para visualizar e materializar às vezes por poucos segundos intensas sensações de perturbação ou estranheza.
Estrada Perdida é justamente um longa-metragem em que seu início trabalha com a construção de uma aura estranha de perseguição, tolhendo a total falta de controle das protagonistas em relação a forças sobrenaturais além de sua compreensão, para após isso alterar drasticamente o ethos narrativo e o próprio protagonista. É um dos filmes confuso no melhor estilo David Lynch e novamente não estou aqui para buscar explicar, mas apresentar as minhas interpretações: você deve assistir e chegar em suas próprias conclusões e quem sabe dialogar ou discordar por completo de tudo que leu aqui, daí advém a beleza dessas obras fronteiriças que entregam mais perguntas do que respostas. Vamos, então, explorar a Estrada Perdida?
O elenco aqui é o mais alternativo até o momento da trajetória de David Lynch, contando com uma série de atores que não retornariam em outros momentos de sua trajetória e com poucos rostos familiares de trabalhos anteriores. Alice Wakefield e Renee Madison (Patricia Arquette), Fred Madison (Bill Pullman), Homem Misterioso (Robert Blake), Dick Laurent (Robert Loggia), Pete Dayton (Balthazar Getty), Sheila (Natasha Gregson). Mas é claro que Jack Nance iria aparecer nem que por poucos segundos, interpretando Phil. Ainda tem vários nomes que tem diferentes tempos de tela, é um número vasto de contribuições e todas alinhadas e participando com exímio quando surgem na narrativa. Foquemos naqueles que rotacionam na narrativa principal e que são fios condutores das ações ou consequências das personagens.
O filme pode ser dividido em duas linhas narrativas (primeira metade e segunda metade) que se entrelaçam por personagens, nomes e localidades. É interessante perceber com a direção de luz se torna responsável diretamente por dividir essas duas sessões narrativas e quando os tons da segunda se encontram com as montagens da primeira percebemos essas intersecções narrativas que teoricamente são destoantes e quase nada conectadas. E aí já valem os elogios para a direção de fotografia (em toda produção de Lynch ela merece elogios), porém há um retorno para as sombras e pesadelos de Eraserhead, pois já em sua cena de abertura nos deparamos com uma casa cheia de cantos frios, silêncios elétricos (uma constante tensão elétrica toca no fundo) que exaltam os segredos e mistérios que permeiam a narrativa de Estrada Perdida. A ambientação (quase que predominantemente noturna) nessa primeira metade é de encher os olhos, com cada cena pensada para promover estranheza e desconforto, somando-se para as atuações e diálogos que mais geram questões do que respostas ou interações que beiram as relações sociais padrões. O fio tênue da verossimilhança vai sendo desfilado já em sua cena de abertura, pois Fred recebe uma chamada no interfone, atende e ouve uma voz: “Dick Laurent está morto” e quando olha pela janela não há ninguém na porta ou rua. Desse ponto adiante em que o casal Fred e Renee recebem uma filmagem curta da porta de sua casa o clima de paranoia só aumenta. A mistura entre os elementos realistas (miméticos em relação ao nosso real empírico dos leitores e espectadores) com a presença do sobrenatural gera uma sensação de descontrole das mãos das personagens e quando não se há movimentos para explicitar que forças sobrenaturais são essas, suas tonalidades de terror são realçadas, deixando tudo mais tenso e periculoso, pois se não somos capazes de racionalizá-la, tais forças são desconhecidas, portanto, mais temerosas por não sabermos seus potenciais e maneiras de combate-las.
Essa imagem do sobrenatural é personificada pela figura nomeada como Homem Misterioso, pois é o responsável por promover esses momentos em que as leis do espaço/tempo da própria narrativa são desrespeitadas. Ele está diante do protagonista e simultaneamente está em sua casa atendendo ao telefone enquanto interage com Fred cara-a-cara.
Seu figurino e reações transmitem uma sensação quase diabólica, de uma força além que é dotada de interesses que não permeiam a compreensão dos míseros humanos. Promove medo, arrepios, insegurança, paranoia, terror e horror mesclados em um resultado belissimamente aterrorizante. Uma temática que já exploramos na realidade pesadelo de Eraserhead que se encontra com a narrativa pitoresca de Twin Peaks, em que David Lynch retorna a colocar os elementos oníricos vastamente em sua narrativa, porém esses elementos ganham tons horríficos, aterrorizantes, estranhamente familiares e simultaneamente incompreensíveis.
A realidade não funciona de maneira correta nessa narrativa e em diversos momentos nos assustamos com essa intersecção entre “real” e “sobrenatural”. Existe uma casa no território da Estrada Perdida (essa rodovia que já aparece nos créditos de abertura) que promove essa espécie de chave-portal entre as realidades narrativas e o contato entre essas duas forças. Essa “cabana” incorpora uma espécie de fecho de colar que representa essas intersecções entre a primeira e segunda narrativa, como também centro a representação das forças sobrenaturais presentes no longa-metragem:
A rodovia incorpora esses caminhos, é quase concreto a visão criativa de David Lynch dirigindo durante a noite, em uma época de lua nova, em que observamos pelas janelas e a criatividade voa para os mistérios daqueles ambientes soturnos, jogados em sombras, abraçados pelas luzes dos faróis, enxergando árvores, lugares abandonados, lugares em que sempre nos perguntamos o que poderia haver ali, quais segredos se escondem naquelas empresas, entregadoras, madeireiras, esse ambiente longe da realidade urbanística em que talvez as forças sobrenaturais fora de nosso controle ainda tenham poderes capazes de influenciar a nossa tão artificialmente controlada realidade empírica.
Talvez a música de abertura “I’m Deranged” com a frase de abertura cantada por David Bowie:
Engraçado como segredos viajam
Funny how secrets travel
Eu começo a acreditar se eu fosse a sangrar
I’d start to believe if I were to bleed
Céus finos, o homem acorrenta suas mãos erguidas
Thin skies, the man chains his hands held high
A trilha sonora é em sua grande parte responsável por construir os altos e baixos da narrativa, ambientando a narrativa em sua insanidade bem planejada. Existem ícones musicais que reconhecemos automaticamente – aliás, Angelo Badalamenti está presente novamente com sacadas perfeitas para a ambientação Neo-Noir de Estrada Perdida – até montagens sonoras que geram angústia e receio:
E ela é vasta com a presença de variados artistas: David Bowie, Nine Inch Nails, Barry Adamson, Marylin Manson e até do próprio Antônio Carlos Jobim.
Sobre a narrativa em específico, sua confusão é manifestada quando a protagonista Fred – no corredor da morte – é possuído, sofre alteração física/mental quando Pete Dayton se manifesta. Não há mais nosso protagonista anterior e não é uma personagem nova completamente desfavorecida de memórias. Pete tem suas relações e seus conflitos, quase parecendo uma união de personas em um mesmo corpo, afinal, ambas as personagens têm traços parecidos (apesar de serem divergentes por inteiro em suas personalidades e expressões musicais). Mas, o conflito segue na mesma esfera: Pete tem amores possessivos, traidores pela mulher de um chefe da máfia, o duplo de Renee que é Alice.
Alice e Renee são as mesmas pessoas? Personalidades que habitam o mesmo corpo? Alice é uma irmã gêmea perdida? É a sua outra vida secreta em relação a Fred?
Estrada Perdida ergue essas dúvidas e exalta as paixões controladoras do ego de Fred e Pete que renunciam a tudo pelo controle de seus amores, sendo levados a completa paranoia e a entrar de cabeça no jogo do Homem Misterioso que os carrega pela narrativa como um mestre das marionetes pelas estradas narrativas. Sua perdição em desvelar segredos e buscar compreender os mesmos que deviam ter ficado silenciados. Seus envolvimentos com tais femmes fatales da narrativa promovem essa abertura das portas para o encontro direto com o sobrenatural e essa entidade diabólica que embalsama seus destinos e tragédias. Elas seduzem, conquistam, quase selam pactos no estilo succubus para ruir essa figura masculina que sonha com controle, que sonha com unidade e que teme pela perca de sua hegemonia patriarcal. É uma ode a formação dessas personagens poderosas sem transformá-las em monstros, mas em figuras de desejo que dialogam com o arquétipo clássico da feminilidade com temperos de malícia e independência. Sua sensibilidade para tocar nas temáticas de abuso e violência – ressaltados principalmente na crítica de Blue Velvet continuam aqui – em que expõe questões pesadas, mas com uma delicadeza sem ser violentamente gratuito – e quando é como foi comentado em Coração Selvagem há intenções narrativas para essa tomada de roteiro. Será que todos nós estamos nessa Estrada Perdida?
Estrada Perdida é uma espiral, é cíclico os pesadelos que as personagens testemunham, em que seu final é seu início. Ficam as dúvidas e as diversas interpretações das sombras, segredos, luzes, músicas, reações e ações das personagens. David Lynch cria esse ambiente sobrenatural, essas entidades e essa cosmogonia insana de entidades e poderes que nunca (e pelo bem) foram explicados detalhadamente. Tudo pode ser compartilhado entre as suas obras ou isolados entre si. É horrificamente instigante, desafiador e sedutor em que não existe preocupação em responder. Não são necessárias respostas. É a experiência e o que resulta disso no espectador mais atento em viajar pela sua narrativa do que alguém ansioso em ser respondido nos seus anseios e questões. O tesouro não está no final da jornada. É a melhor faceta do diretor que nunca produziu terror em seu estilo direto e talvez tenhamos sido abençoados por isso… Afinal, talvez houvesse potencial de transportar para os espectadores os mais recônditos espaços de pesadelo que testemunhamos ao entrar nos reinos oníricos todas as noites…
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Filme: Estrada Perdida (Lost Highway) Elenco: Patricia Arquette, Robert Loggia, Robert Blake, Bill Pullman, Balthazar Getty, Jack Nance, Natasha Gregson Direção: David Lynch Roteiro: David Lynch, Barry Gifford Produção: França, Estados Unidos Ano: 1997 Gênero: Terror, Mistério, Thriller Sinopse: Um músico é acusado de assassinar sua esposa em casa. Ele sabe que não foi ele, mas ao ver as fitas da câmera de segurança, sua opinião muda, e não consegue entender o que aconteceu até descobrir a verdade. Classificação: 16 anos Distribuidor: October Films, Ciby 2000 Streaming: Reserva Imovision, Prime Video, Telecine Nota: 10 |