Existe um tipo de visão maniqueísta nos thrillers políticos estadunidenses em atribuir heróis (sempre eles) e vilões para uma história, seja ela real ou fictícia. No século XX, os comunistas e a Rússia eram (e ainda são em alguns casos) os grandes antagonistas de tramas de espionagem internacional e conflitos entre essas duas potências mundiais. Agora, o “mal” da vez passou a ser os países árabes de religião muçulmana. O que acontece é que a grande maioria dessas produções não assumem responsabilidade com o que estão discutindo e acabam se tornando cruciais na criação de imaginários xenofóbicos e preconceituosos, os quais o diretor Tarik Saleh, nascido na capital da Suécia e com pai egípcio, teve de aprender a conviver.
Em Cannes, onde recebeu a honraria de Melhor Roteiro por Garoto dos Céus — no original, Boy From Heaven —, ele fala como o mundo está obcecado pelo mundo islâmico mas não em conhecê-lo e entendê-lo além do viés ocidental. Fica claro, a partir desta constatação, os motivos e os principais intuitos por trás do seu mais novo filme: trazer um olhar de dentro, não enviesado e crítico acerca da religião, a política por trás da religião e os jogos de poder e interesses que tem em literalmente todos os países do mundo.
Apesar desse objetivo, é válido ressaltar que Garoto dos Céus não é didático e tampouco busca a todo tempo contextualizar a audiência sobre figuras, cenário político (no caso, durante o regime de Abdul Fatah Khalil Al-Sisi), religião, vertentes e costumes. E isso não é uma crítica, é um dos principais méritos do longa, que não entrega tudo de bandeja e força quem assiste a sair da sua zona de conforto de não só conhecer, mas de entender por conta própria.
No centro da trama e que nos serve como guia dessa história está Adam (Tawfeek Barhom), um jovem muçulmano e filho de pescador que recebe a oportunidade de ser bolsista da Universidade de Al-Zhar no Cairo – uma das maiores instituições da história islâmica do mundo. A sua chegada, no entanto, é embalada por um momento conturbado quando o Grande Imã da mesquita da faculdade (para fins de contextualização, equivale ao Papa para os católicos) falece abruptamente. Assim se inicia uma disputa de poder em que grupos tentam emplacar os seus candidatos para suceder esse tão cobiçado posto.
Com o objetivo de investigar toda a “sujeira” e movimentação por trás dos panos, o detetive Ibrahim (Fares Fares) recruta um estudante para se infiltrar em grupos com viés terrorista dentro da faculdade e servir como um informante para o Estado também fazer as suas movimentações de interesse político, num jogo de xadrez recheado de intrigas e mistérios, que se acumulam numa verdadeira bola de neve. Garoto dos Céus é guiado com primor nos dois primeiros atos do filme — com destaque para a belíssima e tensa cena do concurso de recitação —, mas perde fôlego perto do fim, na hora de juntar as peças deste enorme quebra-cabeça, muito por conta do amontoado de resoluções deixadas para o final. Se sobra acidez para tecer discussões, faltou maior fluidez narrativa para amarrá-las no último ato.
As atuações também deixam a desejar em alguns momentos da trama, se tornando caricatas além da medida e até mesmo novelescas, o que destoa da proposta mais sóbria do filme. A linguagem corporal de Younes Medhat – intérprete de Sobhy — é um bom exemplo disso, com suas expressões maquiavélicas, assim como as de Sherwan Haji, que dá vida a Soliman. É perceptível como destoa do tom, principalmente ao lado da interpretação segura de Barfom. O ator encarna muito bem a figura de um homem simples, ingênuo e, por vezes, perdido nesse jogo de poder. É um personagem difícil de se destacar por conta da maneira silenciosa e sorrateira que Tarik Saleh trabalha o seu arco, mas o ator tira de letra com sua atuação minimalista, ao dizer muito com pequenos gestos, olhares e entonações de voz. Maneirismos que se mostram essenciais para o seu personagem transmitir os seus sentimentos e aprendizados enquanto peão de um jogo que não parece ter vencedores e bonzinhos, onde nem ele escapa de tomar decisões moralmente questionáveis.
Ainda que esses deslizes sejam facilmente notáveis, eles pouco atrapalham Garoto dos Céus de cumprir o seu objetivo. O longa de Tarik Saleh é envolvente, possui imagens recheadas de significados e repagina o cenário dos thrillers políticos e convenções do gênero. Tudo a partir de uma narrativa mais auto-contida que evita sensacionalismos; ao contrário do que o título comercial para o mercado norte-americano — The Cairo Conspiracy — tenta vender.
Garoto dos Céus está preocupado em ser crítico e discutir a respeito deste cenário, não em condenar a religião em questão, mas sim as pessoas e as tais “regras do jogo” de maneira universal. Tanto que essa mesma linha narrativa pode ser aplicada nas mais diversas esferas – seja na igreja, na política norte-americana ou na família real. É um filme que certamente vai incomodar os núcleos reais representados, principalmente num regime autoritário como é o do Egito, país em que o diretor não é bem quisto desde 2015, mas é por essa e outras razões que Garoto dos Céus se mostra ainda mais necessário enquanto obra.
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Filme: Boy From Heaven (Garoto dos Céus) *Estreia nos cinemas dia 19 de janeiro de 2023* |
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