CRÍTICA – GRAND THEFT HAMLET

CRÍTICA – GRAND THEFT HAMLET

Ser ou não ser, eis a questão. A célebre frase de autoria de William Shakespeare (1564-1616), presente no texto de Hamlet, sua mais famosa peça, tem reverberado como poucas ao longo dos séculos extrapolando, inclusive, a zona de influência do cânone literário ocidental para se tornar um marco simbólico da produção artística e cultural humana. No entanto, o poeta e dramaturgo inglês sequer ousaria imaginar que, num futuro distante, sua peça ganharia uma versão cinematográfica filmada inteiramente no palco imaterial do Grand Theft Auto Online (GTA). Grand Theft Hamlet

Dirigido pelo casal Sam Crane e Pinny Grylls, Grand Theft Hamlet é mais uma daquelas iniciativas casualmente surgidas no contexto da pandemia, mais especificamente no terceiro período de lockdown que assolou a Grã-Bretanha, em 2021. Desempregados à época, os atores Sam e o seu amigo Mark Oosterveen encontraram no GTA um refúgio à desolação do momento. Em suas andanças pelas ruas de Los Santos, cidade fictícia onde a ação do jogo acontece, acabaram descobrindo Vinewood, uma espécie de arena cujo estilo arquitetônico remete aos teatros ao ar livre da Grécia dos tempos de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófanes. A inusitada descoberta propiciou a ideia de encenar Hamlet, pioneiramente, naquele mundo virtual, em que, ironicamente, a disputa aberta por poder muito lembra o ambiente palaciano da peça shakespeariana.

Ganhador do Prêmio do Júri no SXSW, o documentário trata de uma experiência facilmente classificável como excêntrica e disruptiva, com uma estranha dose de humor em meio a um universo anárquico de infinitas e imprevisíveis possibilidades, tanto imagéticas quanto situacionais, no qual a violência extrema e gratuita é uma regra básica de sobrevivência. É paradoxal, portanto, que a realização da peça tenha se tornado exequível por meio da renúncia à violência pelos avatares de seus idealizadores, uma vez que a estrutura narrativa de Hamlet demandava convencer mais pessoas a se engajarem no projeto.

Na execução de Grand Theft Hamlet, recorreu-se à técnica de machinima – uma junção dos termos machine (máquina), animation (animação) e cinema –, utilizada para fazer filmes a partir de material integralmente extraído de games interativos em tempo real, aproveitando-se de suas próprias ferramentas tecnológicas, a exemplo dos motores de renderização e do controle de personagens e câmeras virtuais. No Brasil, a machinima foi usada de maneira inventiva pelo cineasta Gabriel Mascaro no ótimo curta-metragem As Aventuras de Paulo Bruscky (2010). O resultado causa um inevitável estranhamento quanto à maneira robótica como os avatares falam e se movimentam em cena, algo que, não raramente, leva a uma perda de naturalidade e dramaticidade de suas ações. Por outro lado, o mecanismo gera momentos hilários inesperados, até mesmo quando a morte acaba sendo o destino fatídico de alguma das personagens.

O desenvolvimento narrativo do longa está estreitamente relacionado ao andamento das etapas necessárias para tirar Hamlet do papel, que vão desde o entusiasmo inicial durante a seleção do elenco, abordando-se, no transcorrer do processo, as dificuldades individuais e coletivas surgidas em meio aos ensaios, e, finalmente, desembocam no ato final de encenar a peça. Aqui, vale a pena destacar dois aspectos. O primeiro, e mais óbvio, são as constantes interrupções protagonizadas por outros players cujo interesse é apenas eliminar os jogadores atraídos pelo teatro de videogame proposto por Sam e Mark. Não chega a ser um empecilho no que diz respeito à fruição do filme pelo espectador, mas certamente foi algo que se constituiu como séria ameaça ao êxito da empreitada.

O segundo aspecto, por sua vez, mostra-se mais interessante caso visto por um prisma sociológico. A despeito de GTA Online funcionar como um universo notadamente à parte, com normas específicas de regramento das relações interavatáricas quase sempre na contramão dos princípios éticos e morais que regulam a vida no mundo off-line, é impossível não considerar o fato de que fatores externos ao jogo servem como elementos capazes de catapultar ou obstaculizar a dinâmica interacional entre seus participantes. Isso vem à tona quando, por exemplo, duas personagens afirmam ter Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), mas que conseguem se concentrar ao colaborar com a peça; ou, então, diante da necessidade de Dipo precisar abrir mão do protagonismo devido ter arranjado um emprego; ou, ainda, quando os cineastas travam uma DR pública, indagando um ao outro se a dedicação prolongada ao GTA não estaria trazendo prejuízo a ambos e aos filhos.

Nesse sentido, Grand Theft Hamlet apresenta-se como uma oportunidade única para lançarmos um olhar sobre os novos padrões comportamentais e possibilidades criativas proporcionados através da sociabilidade no mundo digital. Ainda que não ofereça uma carga emocional similar à de A Extraordinária Vida de Ibelin, outro documentário recente que se volta para a experiência da intersubjetividade mediada por games interativos na web, o extravagante longa de Pinny Grylls e Sam Crane expressa com maior vitalidade o fazer cinematográfico na contemporaneidade, época em que o intangível e o caos do ambiente virtual trazem consigo novas e potentes formas de representação humanas através do audiovisual.


Filme: Grand Theft Hamlet
Elenco: Sam Crane, Pinny Grylls, Mark Oosterveen, Jen Cohn, Tilly Steele, Lizzie Wofford, Sam Forster, Jeremiah O’Connor, Dipo Ola, Gareth Turkington
Direção: Sam Crane, Pinny Grylls
Roteiro: Sam Crane, Pinny Grylls
Produção: Reino Unido, Estados Unidos
Ano: 2024
Gênero: Documentário, Animação
Sinopse: Desesperados por um propósito durante a pandemia, dois atores desempregados encontram consolo ao encenar Hamlet de William Shakespeare no mundo ultraviolento de Grand Theft Auto Online.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Inexistente
Streaming: Mubi
Nota: 8,0

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