Ir assistir um longa-metragem de Francis Ford Coppola é uma experiência única e histórica. Tão memorável quanto aqueles que puderam assistir aos filmes de outros grandes diretores e diretoras que já nos deixaram. Sua carga cinematográfica somente pela direção (e toda história dos bastidores) da trilogia O Poderoso Chefão (1972-1990) marcaria seu nome na eternidade da história do cinema hollywoodiano, mas ainda contamos com Apocalypse Now (1979) e Dracula de Bram Stoker (1992). Agora nos deparamos com outro filme, outra história, outra proposta, que é Megalópolis. Aquele filme que será debatido, discutido, falado por um bom tempo nos meios cinéfilos e espero que ao longo dos anos seja revisitado e questionado novamente pelos críticos e entusiastas da sétima arte para apreciarem seu conteúdo e forma, ressaltando as características positivas e/ou negativas.
Megalópolis é daqueles filmes que gera sentimentos conflituosos ao seu decorrer, afinal, existem muitos momentos grandiosos e de críticas ácidas em relação ao momento histórico contemporâneo; outros geram vergonha alheia com diálogos muito deslocados do que seria uma relação humana comum, atuações que beiram o caricato (no sentido negativo) e uma fotografia quase alienígena, que gera muito desconforto pela quantidade excessiva de filtros. Mas, vamos por partes, afinal, porque há muito para se comentar sobre Megalópolis (o que já é um ponto mais do que positivo dentro de uma indústria formulaica, que corre pequenos riscos e tolhe a criatividade em nome da lucratividade).
No longa-metragem, acompanhamos a trajetória do considerado gênio incompreendido César (Adam Driver) e os conflitos ideológicos-políticos-emocionais em sua trajetória de criar a Megalópolis, essa espécie de cidade utópica ideal que salvaria da decadência o atual império nomeado como “Nova Roma”. Há um elenco considerável de personagens ao longo da trama, com vários rostos famosos dando vida a essa história de Coppola. Além de César, temos Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito), Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), Clodio Pulcher (Shia Labeuf), Hamilton Crassus (Jon Voight), Wow Platinum (Audrey Plaza). Por meio dos nomes das personagens e pela breve apresentação sobre a proposta narrativa do longa-metragem, Megalópolis possui uma vasta quantidade de referências (estéticas, históricas, metafóricas, arquitetônicas) que se manifestam em seu todo. Parece quase uma sátira do respectivo período em que o filme puxa suas reflexões, parodiando muitos elementos culturais romanos e, outras vezes, usando-os para traçar paralelos com a historicidade contemporânea e os dias de crise do início do Séc. XXI.
E daí advém uma das complicações quando se trata da proposta narrativa do filme: em muitos momentos seu fio condutor parece diluir-se em tentar dizer muito, há uma espécie de confusão em situações nas quais não fica claro qual é o objetivo narrativo. Enquanto há certa obviedade nos paralelos metafóricos visuais e elementos sócio-históricos que o roteiro anseia por criticar na contemporaneidade, com espelhamentos claros e construídos genuinamente bem, em outros a confusão predomina – o que, somado a certas atuações que tomaram decisões para dizer no mínimo estranhas, provoca uma espécie de vergonha alheia por aquilo que está sendo testemunhado pelo espectador.
A tentativa de abarcar o mundo comentando sobre amor, utopia, ganância, decadência, idealismos, progresso, cientificismo é mais do que visível, porém há momentos em que o espectador se interroga sobre o que o filme está querendo dizer devido a uma confusão na organização de sua linha temporal narrativa. Esse elemento com certeza foi o ponto mais fraco da obra, somando-se com escolhas estéticas exageradas e colorações da fotografia que relembravam muito mais um filtro de “Tik Tok” elevado ao máximo, gerando uma desconexão até mesmo estética e afastando-se da apreciação daquelas imagens que dificilmente poderíamos nomear de belas. Não é um elemento propositalmente contrastante, com o objetivo de gerar dúvidas no interlocutor que busca compreender os significados da imagem, é somente um apelo visual estranhíssimo e, muitas vezes, piegas (por não encontrar palavra mais adequada).
Não é de hoje que se sabe da dedicação de Francis Ford Coppola em estudar a história da Roma Antiga, e, aproveitando dessa inspiração e interesse pessoal, partiu-se para a formulação de uma narrativa que traça paralelos entre o período do Fim da República Romana (27 a.C.) e os Estados Unidos (Séc. XXI) tratando de todos os elementos que levaram a República para sua decadência e a ascensão do autoritarismo dos imperadores romanos. É notável a simetria de Wow Platinum e Clodio com Marco Aurélio e Cleópatra, ou até mesmo a figura de César com a de Otávio (primeiro imperador oficial de Roma) e a representação histórica de Júlio César e sua tentativa de mudar a República de Roma, vontade herdada por seu sobrinho Otávio posteriormente ao assassinato do tio. Coppola utiliza desses paralelos para promover diálogos entre passado-presente-futuro. Ao longo dos conflitos políticos e das conspirações de Clodio para desqualificar a figura pública de César, percebemos muitos signos autoritários: o símbolo do partido nazista em uma árvore; a bandeira dos confederados – que conspiram por uma ditadura aberta e declarada – simultaneamente ao diálogo com os imigrantes e refugiados, os quais, esquecidos pela República, aceitam discursos populistas que propõem um futuro utópico e de melhorias sociais onde a desigualdade ficaria esquecida como algo do passado corrupto e decadente.
Todos os luxos da antiga Roma evidenciam a questão de uma elite que vive nas situações mais exclusivas possíveis e de um povo que sobrevive ao redor dos prazeres, vícios e decadências morais dos senhores do poder. César é essa figura que vive no plano da genialidade e incorpora os dotes contraditórios daquele que pensa em âmbitos mais profundos de mudança do que pode ser visto como “espírito” humano. A necessidade de César não está somente nos âmbitos materiais, pois, enquanto artista e responsável pelo novo “design” da Nova Roma, é dotado até da capacidade de controlar o próprio tempo para visualizar e alterar as mudanças necessárias do próprio pensamento filosófico da sociedade em questão.
A decadência da sociedade de Nova Roma é testemunhada na cena em que César fala ao seu auxiliar Fundi Romaine (Laurence Fishburne) levá-lo para a periferia e, enquanto acompanhamos a paisagem decadente daquele cenário, várias estátuas históricas de mármore são vistas em meio a chuva e a ruínas cansadas, destruídas ou quebradas. A Justiça e o Direito, estátuas icônicas e conceitos estudados até hoje pela estruturação social ao redor dos conceitos herdados da república romana, realçam que o sistema está em falência – e surge a questão: o que vem posteriormente? Isso reflete diretamente nos conflitos que são percebidos no atual Estados Unidos, esse império em ascensão desde o início do Séc. XX, que sempre realça a ideia de ser a “Terra da Liberdade”.
Tal qual nossa antiga Roma, os EUA não enxergam as decadências e corrosões que a cada novo dia evidenciam suas mazelas e crimes históricos e as situações complexas e difíceis que a nação vem passando. São os índices de desigualdade crescente; os flertes de candidatos com as questões autoritárias; um governo e todos os seus sistemas nas mãos das grandes corporações, que compram leis, alteram julgamentos e circulam livremente por deterem o poder do capital; os vícios e abusos de drogas em expansão – além de uma elite que vive nas máximas do que o capital pode propiciar enquanto a sociedade decai em uma já falida ideia de “Consumo = Felicidade”. Enfim, um país que vive do belicismo apoiando e financiando guerras estrangeiras e alegando lutar pela manutenção da “democracia”.
A parte mais desafiadora é a projeção que existe em torno da figura de César tornando-se o ponto fulcral da movimentação dessa narrativa. Mesmo que haja certo distanciamento pela interpretação das adversidades históricas da personagem contadas pelo ponto de vista do historiador Fundi (que é a voz narradora de todo o longa-metragem), César é uma figura que quase ganha tons messiânicos e divinos, denotando um ponto de vista enviesado daquele que testemunha a jornada de quem está movendo a própria história de Megalópolis. Em determinado momento, César incorpora de fato seu lado profético e de liderança dotada de ferramentas capazes de concretizar a visão mais arquetípica e estereotipada da utopia, uma cidade futurística que gere harmonia e encerre os conflitos humanos em todos os seus aspectos mais profundos filosoficamente. Seu discurso incorpora o que há de mais glorioso no espírito humano, de grandeza e potencial transformador, uma figura única e divina que foi dotada pela sorte ou por Deus da capacidade de transformar, conquistar, evoluir e viver em equilíbrio. Filhos da Razão, Filhos do Iluminismo, é necessário alinhar esses dotes com o conhecimento e a capacidade de compreensão, para, em um novo salto social, garantir que a humanidade dos dias contemporâneos não vá para as ruínas tal qual a antiga República Romana, que ficou nas mãos de imperadores tiranos.
É aí que uma trama cheia de rodopios e fios esparsos complica a vida do espectador – o que ressalta os sentimentos conflituosos em relação ao filme por inteiro – porque podemos levar esse encerramento como uma sátira em que César, dotado da visão “divinizadora” e quase religiosa, tende a caminhar de mãos dadas com os ciclos eternos de tirania que a humanidade presenciou historicamente – e continuam gerando conflitos atualmente. Porém, nada reforça o elemento satírico de que César é um tirano, de que ambos os lados – César X Clodio –, por meio do poder financeiro do capital representado em Crassus, estão lutando pelos mesmos fins que é o autoritarismo. Nada ressalta esses pontos, ficando a ideia diluída pelas características estranhas e confusas levantadas anteriormente. César, portanto, é essa figura unificadora, responsável por passar a mensagem de que a humanidade precisa ser reformada em suas bases para atingir um futuro diferente da antiga Roma, que, tal qual os dias atuais, viu suas fundações destruídas pela corrupção e o acúmulo abissal de riquezas nas mãos de alguns.
No fim… É através de Crassus que talvez encontremos uma solução para o que Francis Ford Coppola imaginou como mensagem moral de sua Fábula – subtítulo que aparece na abertura do longa-metragem; um representante do capital bancário, dotado de poder financeiro ad infinitum, que financia e entrega os recursos para César concretizar seu projeto da Megalópolis e unificar as pessoas no caminho para a próxima etapa de Nova Roma, que parece distante da ultra decadência. Crassus pode ser uma figura redentora, longe dos elementos corruptores e vis com os quais aqueles ao redor do capital são pintados pelas mídias de esquerda. Crassus é o capital consciente, preocupado com seu rastro histórico e se elevando para tornar-se conhecido no universo ficcional do filme como “O Generoso”. Redimiu-se, apesar de todos os luxos e tramas políticas que provavelmente teve em sua vida nessa caricata versão de Roma nos dias contemporâneos. E é por esse ponto que vem a questão: seria Francis Ford Coppola tão ingênuo assim? Enxergar esse espírito da humanidade de maneira tão positivista? De que um único indivíduo dotado de seus potenciais criativos, preocupado com as questões “elevadas” do espírito humano, pode levar a humanidade para um novo estágio em que abandonaria todos os antigos problemas da sociedade anterior?
O discurso positivista incorporado em uma figura idônea gera ramificações problemáticas, afinal, a solução é apresentada por um indivíduo dotado de potencial para converter os outros a essa visão ideológica de um futuro melhor. O positivismo com a noção de “progresso” mostra sua decadência desde os antigos dias de Augusto Comte, fundador dessa escola de pensamento. A visão pragmática da ciência trouxe grandes saltos tecnológicos, mas, é quase a idealização de que este pensamento é o único que se preocupa em incorporar fatos e verdades. Onde está esse fato quando nos colocamos diante da bomba atômica? Onde está essa verdade quando observamos os efeitos atuais do aquecimento global (permitam-me a correção: Ebulição Global)? Onde está esse fato diante das tensões nucleares e da escalada de crises humanitárias ao redor do mundo? E a capacidade autoritária de dar poderes para um único indivíduo que se vê capaz de levar a humanidade pelos mares históricos construindo a glória do verdadeiro espírito humano? Existem muitas contradições nessa mensagem ultra florida de que basta nos preocuparmos com as “questões verdadeiras” da humanidade para, quando encontradas e capturadas, conseguimos reformar a sociedade para um futuro melhor.
Além de destruir qualquer tipo de manifestação individual, através da proposta de que há um ponto de vista “verdadeiro”, foi-se anulando manifestações culturais historicamente oprimidas e, muitas vezes, vítimas de genocídios. As diversas etnias indígenas não se encaixam dentro do termo eurocêntrico de visão científica da verdade, porém, detém seus conhecimentos e suas próprias pragmáticas de como compreender o mundo. Não é relativizando as ideias que qualquer ponto de vista é válido, mas a ficção está, desde a publicação de “Frankenstein, o Prometheu Moderno” (1818, Mary Shelley), denunciando as mazelas dessa ciência que corrompe corpos e destrói os outros em nome do tão falado e defendido “progresso”.
Surgem as questões: seria César a figura satírica do tirano que incorpora os ideais românticos guiando a nação para um futuro utópico idealista desse povo escolhido pelo messias? Seria ele uma mensagem florida e bela do espírito glorioso da humanidade, que ressalta os pontos positivos que possuímos para uma reformulação que nos torna mais empáticos e coletivos enquanto sociedade?
Difícil de encontrar essas respostas com somente uma única experiência do filme – e aqui vai meu elogio: é um longa-metragem que será revisitado para propiciar várias possibilidades de debate e a busca eterna pelas interpretações, que nunca terão seu fim. É o famoso cinema autoral que, odeie ou ame, ainda é uma experiência válida para qualquer entusiasta da sétima arte formular sua opinião. Em dias de tantas fórmulas, há de se ver esperanças quando esse tipo de manifestação artística acontece. Complexo, problemático, com altos e baixos, e diferentes significados, Megalópolis possui muito, muito mesmo para oferecer ao público. Por isso, eu o reassistiria na primeira oportunidade para continuar minha jornada histórica com o diretor, com o próprio meio artístico do cinema e com a própria vida – vida na qual a arte faz seus paralelos para que os sentidos florescidos da apreciação (mesmo aquilo que gera conflitos) nos mantenham lúdicos em relação ao próprio universo…
Filme: Megalopolis (Megalópolis) Elenco: Adam Driver, Nathalie Emmanuel, Jon Voight, Laurence Fishburne, Shia Labeouf, Giancarlo Esposito, Grace VanderWaal, Audrey Plaza. Direção: Francis Ford Coppola Roteiro: Francis Ford Coppola Produção: EUA Ano: 2024 Gênero: Ficção Científica, Drama Sinopse: Um conflito entre César, um artista genial que busca saltar para um futuro utópico e idealista, e seu opositor, o prefeito Franklyn Cicero, que permanece comprometido com um status quo regressivo, perpetuando a ganância. Classificação: 12 anos Distribuidor: Lionsgate Films Streaming: Indisponível Nota: 8,0 |