Memórias de um Caracol, dirigido por Adam Elliot, nos leva para dentro da vida de Grace (Sarah Snook), uma desajustada colecionadora de carícias. A mulher, que tem um irmão gêmeo, Gilbert (Kodi Smit-McPhee), desabafa com um de seus caracóis sobre sua vida. Sua trajetória, suas memórias, seus altos e baixos.
Natureza do stop motion
No stop motion, cada quadro é um fôlego de vida moldado à mão. O inanimado se move, respira, sem nunca deixar de ser matéria. É como se cada objeto contasse uma história única, impregnada de textura e alma, que ressurge com cada nova fotografia. Cada fibra do tecido, cada ruga da argila, cada pincelada na tinta carrega consigo um vestígio de realidade, uma presença tangível que respira entre os quadros. O stop motion habita um espaço liminar – onde o inanimado ganha vida sem nunca perder sua matéria.
A fisicalidade dos materiais não é um detalhe, é a própria essência. Aqui, o material constrói um mundo fantástico, onde o palpável se transforma em imagens vivas. A luz incide sobre os bonecos como só a luz real pode fazer, criando sombras que não precisam ser simuladas. Há algo fascinante em ver madeira, látex e massinha ganharem alma, deslizando pela tela com naturalidade. Existe um encantamento em ver algo feito à mão se mover como se sempre tivesse sido vivo. O stop motion não busca a perfeição do realismo, mas algo ainda mais poderoso: a sensação do real. Não é sobre fidelidade, é sobre toque. Sobre um mundo que existe em algum lugar entre o sonho e a matéria.
Dessa maneira, existe um fascínio natural no stop motion que traz aos nossos corações um certo calor. O stop motion reside em um lugar muito específico de nossas almas, que se encanta ao ver o real adquirir vestígios do irreal. Contemplar isso sempre me traz uma sensação de encantamento; um deslumbre por ver outro mundo ser construído dentro do nosso próprio, tangível e palpável. Algo como uma pontada de orgulho ao ver um ser humano assumindo, mesmo que por um tempo, o papel de Deus. Fazendo surgir vida do que até então não possuía.
As emoções de Memórias de um Caracol
Esse misto de sensações que a própria forma traz consigo inerente a sua natureza é uma das coisas que faz Memórias de um Caracol funcionar tão bem. Não que o uso do stop motion por si só faça de um filme um grande filme. O que quero dizer é que o filme de Elliot sabe se aproveitar muito bem dessas emoções naturais do formato para potencializar os sentimentos que sua narrativa quer trazer.
Memórias de um Caracol é, acima de tudo, sobre a beleza na tristeza. O longa é, sem sombra de dúvidas, extremamente triste. A vida de Grace parece não ter um único momento feliz. Sempre que as coisas dão certo para a garota é por um breve período de tempo. Logo mais, o sucesso é levado sem piedade pelas mãos frias do destino. É um filme melancólico, depressivo. Inclusive, o estilo escolhido para o visual ressalta muito isso. Tanto os bonecos quanto os cenários fazem parte de um conceito imagético bem melancólico; a cidade é triste, as vidas que caminham por suas ruas são tristes, os animais são tristes. Até lembra em certos momentos o visual macabro de Tim Burton.
Melancólico e reconfortante
Entretanto, Grace sempre ergue a cabeça e segue em frente, não importa o que aconteça. Por mais que sua vida esteja em desespero, ela consegue ver coisas que a fazem seguir em frente. Como ela mesma diz no começo do longa: “sou uma pessoa que enxerga o copo meio cheio”. Grace não só encontra forças para prosseguir, como ela abstrai esse poder diretamente de seus martírios. Consegue enxergar na tristeza uma certa beleza que a faz querer continuar.
Entender isso é vital para compreender os sentimentos despertados pelo filme. Ele é triste, não se engane. Mas, sempre encontra uma maneira de te confortar depois de te destruir. É como o calor do abraço de mãe na infância, para o qual a gente corre após levar uma bronca estrondosa do nosso pai. Por isso, a escolha de utilizar o stop motion é extremamente sagaz. Memórias de um Caracol não precisa te dar um momento feliz na narrativa (afinal, ele praticamente não tem nenhum) para te fazer seguir em frente. A forma do filme faz isso. O stop motion é o responsável por deixar nossos corações quentinhos e nos fazer seguir em frente. Os bonecos manufaturados acariciam nossas cabeças com suas mãos de massinha e nos permitem aguentar toda aquela tristeza.
Brutalidade em Memórias de um Caracol
É interessante como, no meio dessa forma naturalmente calorosa, Elliot não tem medo de ser brutal. Não apenas brutal com seus personagens – no sentido de ser impiedoso com eles – ou conosco, que sofremos com eles. É brutal com o próprio formato. Memórias de um Caracol é um longa repleto de imagens atrozes, violentas e repugnantes, e não tem medo de ser assim. Contemplamos muitas coisas que nunca imaginaríamos contemplar em um stop motion (incluindo uma criança sendo queimada viva). Um longa agressivo, sem dó de ir até o limite das possibilidades da imagem para potencializar a tristeza de toda aquela trajetória. Algumas cenas até parecem ter vindo direto de um filme de terror, nascidas no pesadelo de alguém perturbado pela vida.
Ciclo da vida
Ainda assim, não se resume apenas a isso. Como dito anteriormente, é sobre enxergar beleza e esperança nos momentos ruins. E isso não é muito diferente do que a vida é. Temos momentos ruins, mas tentamos, assim como Grace, ver o copo meio cheio. Levantar a cabeça e seguir em frente. Nessa perspectiva, a utilização da figura do caracol como pilar para o filme é muito simbólica. Afinal, a vida é cíclica para todos os seres vivos. Nascemos, vivemos, sofremos, somos felizes, amamos, odiamos, morremos; qualquer um nesse mundo passou, passa, e passará por isso. Então, é muito simbólico reforçar a existência dos altos e baixos em todas as formas de vida.
Grace entende que, assim como os caracóis, ela também faz parte da natureza. Elliot quer que a gente também entenda isso. Nós somos natureza. E, não importa o quão brutal nossa vida esteja, milhões de outros seres vivos também se sentem assim. Você não está sozinho; eu também estou nesse barco, Elliot também está, os caracóis no gramado do quintal da sua avó também estão. O importante não é resumir nossa vida ao momento ruim que estamos, por mais escuro e sem saída que possa parecer. O importante é perceber que ele é natural, faz parte de um momento e, como todo momento, também é passageiro. Alguma hora vai melhorar. Memórias de um Caracol quer que você enxergue o copo meio cheio, levante a cabeça e siga em frente.
![]() |
Filme: Memórias de um Caracol Elenco: Sarah Snook, Kodi Smit-McPhee, Jacki Weaver, Magda Szubanski, Dominique Pinon Direção: Adam Elliot Roteiro: Adam Elliot Produção: Austrália Ano: 2024 Gênero: Animação, Drama Sinopse: Grace, uma mulher colecionadora de caracóis, desabafa com um de seus animais sobre sua vida. Classificação: 18 anos Distribuidor: Charades Films Streaming: Não disponível Nota: 9,0 |