CRÍTICA – MUGUNZÁ

CRÍTICA – MUGUNZÁ

A Rosza Filmes é, sem dúvidas, um grande respiro e força expoente do cinema nacional. Algo que, em termos de pungência e caráter ou marca, só se compara com coletivos como Filmes de Plástico e poucos outros. Isso se pensarmos apenas no cinema contemporâneo e independente que já possui algum espaço no imaginário do seu público. E que, aliás, já conquistou um público. No caso da Rosza Filmes o público é conquistado também por alguns símbolos que são catalisados nas suas produções. A exemplo, narrativas fluidas e surpreendentes, alguma flexibilidade em relação à linguagem cinematográfica tradicional e talvez o principal: a familiaridade despertada pelas personagens que seus filmes apresentam. Retratos que não querem nem podem ser esquecidos. 

No filme “Mugunzá”, tudo isso ressurge de forma ambígua e um tanto complexa a tal ponto de não significar exatamente um “ressurgimento”. Há mais exatamente uma potencialização das gírias, do naturalismo em contraste com a performance, o teatro, o canto e o centro, as ruas. Tais alterações fruto disso que denomino “potencialização”, guia Mugunzá, através do roteiro e cinematografia da Glenda e o Ary, das ruas, sua glória, em direção aos palcos, sua aventura misteriosa. Estaremos, o público nacional, preparados e preparadas para tais rupturas?

De imediato, já penso que nosso preparo pouco importa como algo anterior e/ou independente ao/do filme. O que nos torna mais ou menos à vontade para receber o porvir é o próprio filme, sua ambientação e futuro mergulho. Não achemo-nos, enquanto público, únicos/únicas responsáveis pelo o que nos toca. Cineastas sabem como e o que nos farão enxergar no escuro. No entanto, é aí que Mugunzá nos proporciona o primeiro e mais forte abalo: a primeira cena do filme é recheada de teatralidade e já anuncia o quê de musical presente no mesmo. E tal teatralidade não se mostra apenas através do recurso de utilizar o mesmo ator para encenar/incorporar mais de uma personagem. Mas também no mais notório: o cenário é um palco. Até aqui a teatralidade pode surpreender mas não periga ocasionar nenhum dano ao universo cinematográfico no filme, seu enredo e coerência. No entanto, o teatro adentra também a linguagem do filme, não apenas na sua estética. Digo, Mugunzá busca uma forma de fundir a linguagem teatral à linguagem audiovisual. Por exemplo, há as mudanças repentinas de tom que no teatro acentuam a presença de duas vozes numa só personagem: a consciente, presente em cena e perceptível às demais personagens, e a reveladora, geralmente em tom mais ameno e ideias mais íntimas não raro compreensíveis ou disponíveis apenas para o público infiltrado no corpo e n’alma dessa personagem. Tal mudança geralmente ocorre com a ajuda e acompanhamento de um jogo de luz que evidencia a personagem cuja voz dialoga com o público e põe em segundo plano a outra personagem abandonada pelo desnível da intimidade. Artifício ou ferramenta básica e comum a montagens mais ou menos criativas. Não raro é o que resta e basta. No cinema a luz é o que reflete no olho e o olho é a câmera. Portanto, o primeiro e segundo plano são definidos pelo foco da câmera, queira ela dividir a tela ou concentrar-se na única personagem que importa. No filme “Mugunzá” a personagem principal tem inúmeros momentos de profundas e, infelizmente, comuns revelações para as quais os ouvidos dos homens ao seu lado parecem não estar preparados. Nós estamos?

Essa pergunta tem, no mínimo, duas interpretações e ambas encontram eco no que eu já disse anteriormente e repito: o público não é o único responsável por preparar-se para o que vai atingi-lo. Não no que diz respeito à matéria de Cinema. O início do filme, afinal, serve para ambientar. Ou não. No filme em questão a sensação que tenho é que a montagem pregou em si mesma e em nós uma peça. Porque enquanto público, desconexo dos porquês do filme e da equipe, sinto-o e sinto-me muito melhor preparado para as propostas que o filme me faz se penso-o como tendo início a partir do seu meio: a cena do bar. Poderia elencar aqui alguns porquês, porém todos se deteriam a algo que o filme não é, mas seria. E o que seria não me importa. O filme ao qual assisti é um e nele a partir da cena do bar, com toda introdução, apresentação das personagens, do território e da presença do respiro suficiente para e entre os cantos, sinto-me enfim preparado para melhor absorver o filme e essas propostas. Me sinto melhor preparado para os gritos, as falas com poesia por vezes panfletária e também para as canções que fazem referências a músicas do Chico Buarque (como Gota D’água e Mil Perdões), além das que fazem referência às de Lupicínio Rodrigues. Falando em Gota D’água, Mugunzá talvez seja mesmo uma montagem cinematográfica desse texto clássico do teatro brasileiro escrito por Chico Buarque e Paulo Pontes. Mas será a primeira ou a melhor executada?

De toda forma, ao apresentar-nos o filme com a montagem como está, a direção nos confunde para além do simples não-preparo do terreno. Ao não realocar o “primeiro ato”, a montagem torna Mugunzá quase insosso de início e assim percebemos também uma das questões centrais do filme: os seus gritos. Eles são lidos pela sociedade tal qual podem ser ouvidos no filme. Isso é, demasiados, impacientes, maltratados, desnecessários ou incabíveis. Esse é também um ponto de virada que o filme sustenta ao apresentar personas pretas com tamanha complexidade e humanidade. Sim, o veneno, também num filme, pode ser um remédio. Nesse sentido, um trecho curioso me chama à atenção: “desde que Cachoeira é Cachoeira, tem um homem para mandar e uma mulher para obedecer”. A mulher que quis dar um basta nisso é considerada louca, puta e/ou sofre as consequências do maior sintoma da “síndrome do ocidental” que, para manter as referências a Chico Buarque já presentes no filme, irei definir o parafraseando: “filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. Quer dizer, a mulher que diz “A força da juventude me deu coragem para seguir frente” e romper com a tradição patriarcal de Cachoeira e do mundo, apontar para o novo, o inesperado. Essa mulher sofre com a covardia do homem que recorre à violência para manter o vínculo “homoafetivo” que nos leva a brigar com as mulheres em defesa de outro homem. Veja, quantos homens culpam mulheres por sofrerem assédio de outros homens? Pensemos bem… Sempre consideramos que “ela deu mole” e etc., absurdos que fazem-se compreensíveis no filme quando um só homem interpreta várias forças representativas da sociedade patriarcal. No fundo, todos os homens representados são milenares. Precisamos ser “o lobo do lobo do Homem”. Quer dizer, matar a força que inexoravelmente busca/leva-nos a matar-nos uns às outras. Outras que apresentam-nos ou simplesmente são e escancaram a luz do futuro. Mulheres que não necessariamente se prendem ou se deixam prender a filhos, mulheres que amam outras mulheres, que não dominam e são conscientes das suas inteligências sem sucumbir ao mito da impulsiva emoção. 

Portanto, há dentro e fora do filme um embate entre forças do progresso. Tanto o artístico, quanto o humano e histórico. Há aqueles que só o querem dentro das regras e limites da linguagem e jogos já conhecidos e benéficos. Há também aqueles e aquelas que querem jogar além e até mesmo aquém desse jogo comum. Também no campo da representação e da narrativa, Mugunzá garante seu abalo e vitória. As questões outras sempre estão aí para depois…


Filme: Mugunzá
Elenco: Arlete Dias e Fabrício Boliveira
Direção: Ary Rosa e Glenda Nicácio
Roteiro: Ary Rosa
Produção: Brasil
Ano: 2022
Gênero: Drama, Romance
Sinopse: Arlete acorda e está tudo fora do lugar. Ela perdeu um amor, um filho, a casa, e agora quer justiça.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Rosza Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 7,0

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