CRÍTICA – NOITE DE ESTREIA

CRÍTICA – NOITE DE ESTREIA

O cinema de John Cassavetes é totalmente autoral e a influência do teatro é realmente palpável em muitos aspectos de seus filmes, especialmente na forma como ele valoriza as interações humanas e as emoções cruas. O cineasta transcende a simples filmagem teatral, transformando a câmera em um participante ativo das cenas. Ele emprega a câmera como um ator, que se move e responde às dinâmicas dos personagens, criando uma experiência ao mesmo tempo visceral e íntima. Como afirma Emanuel Levy, Noite de Estreia

“[o cinema de Cassavetes] confere uma aparência de cinema vérité. Seus personagens, a maioria conservadores obsessivos no limiar da histeria, revelam-se em pequenas palavras. […] Os filmes de Cassavetes violam o enquadramento elegante e o ritmo fluente de Hollywood.”

Essa abordagem dinâmica contrasta fortemente com o teatro filmado do primeiro cinema, onde a câmera era estática. Em vez disso, Cassavetes usa a câmera para enfatizar a intensidade dessas interações, permitindo que o público sinta a energia e a tensão dos momentos retratados. A câmera, ao se tornar um observador móvel e curioso, captura a essência dos personagens e das situações. Apesar de parecer improvisado, os filmes de Cassavetes tem em sua base scripts precisos.

Em Noite de Estreia, o cineasta conta a história de Myrtle Gordon, uma renomada atriz de teatro que enfrenta uma crise pessoal e profissional após a morte acidental de uma jovem fã que a idolatrava. A tragédia afeta profundamente Myrtle, que começa a lutar contra seus próprios demônios enquanto se prepara para estrelar uma nova peça de teatro. Conforme a estreia da peça se aproxima, Myrtle se vê cada vez mais perturbada, questionando sua própria sanidade e sua capacidade de continuar atuando.

Se passando durante uma peça de teatro, Noite de Estreia adiciona camadas de reflexão sobre a natureza da performance e da identidade artística. Cassavetes usa essa ambientação teatral como um meio para explorar questões mais amplas sobre a vida, a morte, o envelhecimento e a busca pela autenticidade. Sua formação como ator de teatro certamente influenciou sua perspectiva sobre o processo criativo no cinema. Diferente da Nouvelle Vague, em que a noção de cinema autoral surge da crítica para a direção, Cassavetes era um ator de teatro, então sua perspectiva de autor vem da atuação para a direção.

Essa abordagem se encaixa perfeitamente em Noite de Estreia, pois Myrtle Gordon frequentemente improvisa e muda drasticamente suas falas. Esse improviso, fruto do desconforto da atriz ao interpretar uma personagem que nada tem a ver consigo, altera radicalmente a peça. Alguns dos atos na tela são mostrados mais de uma vez, cada um com conotações e tons totalmente diferentes dos outros. Aqui, o ator é basicamente o autor, moldando a narrativa e a emoção de cada cena através de sua interpretação. Cassavetes, portanto, transforma o cinema em um espaço onde a improvisação da performance teatral se tornam a força motriz da narrativa cinematográfica.

A metáfora da segunda mulher permeia várias camadas da narrativa em Noite de Estreia, desde os relacionamentos interpessoais até a jornada interna da protagonista, Myrtle Gordon, interpretada brilhantemente por Gena Rowlands. O aspecto mais significativo dessa metáfora é a transformação interna de Myrtle à medida que ela confronta sua própria mortalidade e o envelhecimento inevitável. A morte da jovem fã serve como um lembrete vívido dessa realidade, desencadeando uma crise existencial em Myrtle e levando-a a enfrentar seus medos e inseguranças em relação à idade e à passagem do tempo.

O simbolismo mais proeminente é a segunda mulher que está nascendo dentro de Myrtle. Ela está envelhecendo e essa nova identidade está emergindo. Myrtle se vê na jovem fã que morre, mas o verdadeiro conflito reside na morte da jovem Myrtle. Ao interpretar uma mulher mais velha, ela sente medo de entrar em uma fase da vida da qual não pode escapar. Ao mudar as falas e o rumo da peça, a protagonista tenta mudar seu próprio destino, mas é incapaz de evitar a velhice que a todos chega. O filme carrega um tom otimista. Na noite de abertura, a peça assume uma conotação e um rumo totalmente diferentes. A plateia ri, e a peça se transforma em uma comédia. Essa é a maneira de Myrtle lidar com seu temor: ela aceita seu destino e ri dele.

Noite de Estreia, dessa forma, é simplesmente mais uma obra-prima de John Cassavetes. Um dos mais proeminentes de sua geração, ele desafiou as convenções de Hollywood, focando nas complexidades e nas nuances das emoções humanas. Em Noite de Estreia, o diretor não apenas narra a história de uma atriz em crise, mas também oferece uma profunda meditação sobre a arte da atuação, o envelhecimento e a busca incessante pela verdade emocional. Noite de Estreia é, sem dúvida, um testemunho da genialidade de Cassavetes.


Filme: Opening Night (Noite de Estreia)
Elenco: Gena Rowlands, John Cassavetes, Ben Gazzara, Joan Blondell, Paul Stewart, Zohra Lampert, Laura Johnson, John Tuell, Ray Powers, John Finnegan, Louise Lewis
Direção: John Cassavetes
Roteiro: John Cassavetes
Produção: EUA
Ano: 1977
Gênero: Drama
Sinopse: A atriz Myrtle Gordon é uma alcoólatra funcional que está a poucos dias da estreia de sua mais recente peça, que trata de uma mulher angustiada com o envelhecimento. Uma noite, um carro mata uma das fãs de Myrtle que estava perseguindo sua limusine na tentativa de chamar a atenção da estrela. Myrtle internaliza o acidente e embarca em uma busca espiritual, mas não consegue encontrar as respostas que procura. Com a noite de estreia se aproximando cada vez mais, a frágil Myrtle deve encontrar uma maneira de fazer o show continuar.
Classificação: 13 anos
Distribuidor: Faces Distribution
Streaming: Mubi
Nota: 9,0

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