Nosferatu, dirigido por Robert Eggers, apresenta a história de Thomas Hutter (Nicholas Hoult), um jovem agente imobiliário enviado ao exterior para negociar uma propriedade com o enigmático Conde Orlok (Bill Skarsgård). Conforme a permanência de Hutter no castelo se estende, o homem percebe que Orlok é um ser amaldiçoado, que anseia roubar sua esposa, Ellen (Lily-Rose Depp). Então, Hutter deve enfrentar forças sobrenaturais para salvar a sua amada e a cidade inteira.
Inspiração em Drácula
O ano era 1897 e o Reino Unido tremia em terror ao folhear as páginas da obra de Bram Stoker pela primeira vez. O medo do conde vampiro escorria pelas ruas da cidade como sangue, e o temor dos cantos escuros da noite se alastrava entre a população como uma infecção. Drácula (Stoker, 1897) chegou ao mundo para nunca mais ir embora; mantendo para sempre, no imaginário popular, uma pulga atrás da orelha ao percebermos nossa fragilidade diante à madrugada. O livro se tornou um sucesso – apesar de Stoker ter ganhado quase nenhum dinheiro com ele. A palavra do vampiro romeno se espalhou pelo mundo, até inevitavelmente chegar na Alemanha.
Expressionismo Alemão
Durante as primeiras décadas do século XX, o cinema do país germano estava marcado por um movimento chamado Expressionismo Alemão. Em 1916, o governo do país proibiu a importação de filmes estrangeiros aumentando a demanda por obras nacionais. Após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o povo alemão desenvolveu um olhar que, ao mesmo tempo, lidava com os traumas do conflito e também escapava de suas realidades materiais. Longas deste período usualmente lidavam com temas intimamente ligados à psique da guerra, como insanidade, medo e luta. Paralelamente, a construção deles era anti-realista. Ou seja, cenários extremamente artificiais, objetos reais deformados, pinturas com padrões repetidos e/ou geométricos, uma forte utilização de sombras para criação de imagens quase oníricas, entre outras questões. Tal recorte ficou conhecido como Expressionismo Alemão.
Um dos filmes mais famosos do período, e costumeiramente relatado como o primeiro do movimento, foi O Gabinete do Dr. Caligari (Wiene, 1920); contudo, outra grande representação, e o ponto chave do texto de hoje, é Nosferatu (1922), de F. W. Murnau. Murnau foi um grande nome desse período do cinema alemão. Com a fama do livro de Bram Stoker chegando ao país, o diretor se preparou para uma adaptação da história. Como não tinha os direitos autorais para isso, alguns detalhes do livro original foram alterados na versão cinematográfica – principalmente os nomes dos personagens e o final. Assim, o que um dia foi Drácula se transformava em Nosferatu, permitindo ao Conde Orlok abrir a tampa do seu caixão e se levantar para a gélida noite.
A escuridão em Nosferatu
Alguns anos e alguns remakes à frente, chegamos à versão de Robert Eggers. O diretor consegue compreender muito bem uma das emoções mais essenciais que a leitura do clássico de Stoker desperta: o medo do escuro. No livro, mesmo sem o artifício visual, conseguimos ver e sentir a escuridão. É como se o leitor se sentisse oprimido por toda aquela penumbra, acuado e assustado. Ler no escuro? Nem pensar, acende a luz do corredor aí! Um barulho lá fora; será só o vento, ou algo mais tenebroso? Stoker é muito competente em criar uma sensação de sufocamento através da ausência de luz, e Eggers consegue replicar isso muito bem (mesmo não sendo uma adaptação direta do livro).
Nosferatu (2024) brinca muito com os cantos escuros de seus planos. O vampiro reside na penumbra e pode surgir de qualquer canto. Surge, assim, um sentimento de confinamento e paranoia no espectador. O escuro pode ser mais forte do que a luz em nossos corações e nos levar à loucura. A ameaça pode vir de qualquer lugar. Não estamos seguros. O remake de 2024 talvez seja a adaptação (direta ou indireta) do livro que consegue melhor replicar esse sentimento. Contudo, não é como se a obra de Murnau não trabalhasse bem com a escuridão, pelo contrário, faz com exímio. Entretanto, existe uma impossibilidade técnica que define certos limites para isso – como as cenas noturnas ao ar livre, que foram gravadas de dia por restrições das câmeras da época. Ainda assim, o filme de 1922 manipula a falta de luz muito bem, sobretudo as sombras; uma certa mania do expressionismo.
Sombras expressionistas
O filme de Eggers parece prestar certa homenagem ao movimento, principalmente nesse ponto. Eggers brinca não só com os cantos escuros do quadro, mas com as sombras nele presente. Durante certa cena, quando Nosferatu chega à cidade, vemos a sombra de uma mão gigantesca, lentamente se esticando e cobrindo todas as casas e ruas. Revela-se uma maneira tanto de demonstrar como o poder do vilão se espalha através do medo daquela população quanto de prestar certa homenagem ao primeiro filme.
Em outros momentos, essa brincadeira se repete. A sombra assume um caráter quase lúdico. É como se uma entidade maléfica se divertisse espalhando a escuridão pelo plano do filme. Uma brincadeira tão assustadora e maligna quanto saudosista. Não vale mencionar todos os momentos em que isso ocorre (afinal, são vários). Porém, um plano específico é bem marcante e revela o respeito de Eggers quanto a história do cinema, sendo digno de comentário. No início, em um jantar com Thomas e o Conde Orlok, Thomas corta o dedo. A cena então parte para um close-up na cara do vampiro, que arregala o olho e performa uma expressão bem teatral. Uma vinheta preta toma conta das bordas do quadro, e a luz da fogueira tinge o plano de sépia. É bem rápido, mas impossível não notar a semelhança com os close-ups do cinema mudo.
Não chega a ser uma referência específica ao Expressionismo, mas todos estes momentos denotam que Eggers é bem habilidoso em integrar certa bagagem cinematográfica dentro de sua decupagem sem soar artificial ou forçado. Outro exemplo (juro que é o último!) são os encontros entre Ellen e Orlok, nos quais a imagem lentamente perde sua cor, até se tornar preto e branco; paralelamente, tanto um modo de representar a desesperança da mulher, quanto uma dessas jogadinhas técnicas para conciliar o peso de décadas de uma arte com a construção de algo próprio. Dessa forma, não são apenas referências ou pastiches vazios, mas uma maneira que a obra encontra de homenagear sua própria história.
Símbolos do gênero
Para além desses momentos pontuais de visita ao passado, Eggers tem um olho muito bom para imagens bases do terror. Nosferatu (2024) é um filme que trabalha com vários símbolos comuns ao gênero e os articula de uma maneira assustadora, demonstrando o motivo pelo qual se tornaram tão utilizados. Uma carruagem fantasma vindo da escuridão; um homem sozinho em um bosque à noite; uma pessoa dentro de um pentagrama, cercada de velas, performando um ritual; um corpo possuído flutuando na cama. Tenho certeza que você já viu inúmeros filmes com cenas parecidas.
São tropos do gênero, conjuntos de signos basilares para o imaginário do horror. O diretor pega essas ideias e consegue construir imagens que, mesmo já tendo sido vistas antes, possuem muita força. São assustadoras, gelam a espinha tanto quanto seus pesadelos mais profundos. Assim, é notável uma sensibilidade do filme em perceber e saber articular esses pilares tão clássicos de uma maneira que eles revelem o motivo de serem clichês. Portanto, Eggers demonstra uma paixão profunda pelo gênero, e uma capacidade de entender a força de suas imagens. Não importa se você já viu elas, se bem utilizadas, elas lhe darão medo quantas vezes você ver.
Nosferatu (2024), então, confessa ter uma crença muito forte no poder da imagem sobrenatural. Cinema é imagem, mas, em diversas obras, parece não haver uma tentativa de comunicar algo através da composição dela. Aqui, isso não se sustenta. Cada plano do longa parece pensado com carinho, sempre buscando maneiras de conversar com você através do medo, desde tropos do terror até a tentativa de criação de novas possibilidades. Como na cena final, que até se assemelha com uma pintura. Além de extremamente bonita, é um plano bem artificial, que denota bem o contraste entre a realidade e a fantasia daquele universo. Contraste esse, inclusive, que casa muito bem com a atmosfera do livro, novamente.
O contraste de Nosferatu
Drácula (Stoker, 1897) é um romance epistolar. Em outras palavras, uma história contada através de cartas, trechos de diários, documentos, recortes de jornal, etc. Essa forma naturalmente traz um realismo maior para a obra (é quase o found footage da literatura). Entretanto, os momentos em que o vampiro aparece sempre pendem para uma fantasia maior. É uma discrepância clara e é uma das características mais encantadoras do livro. Nosferatu (2024) não é diferente. Um filme que reside normalmente em um realismo maior, mais contido, pé no chão. Contudo, tudo que envolve Orlok pende para um lado mais artificial, caricato e fantástico. Não é à toa que Bill Skarsgård ostenta um bigodão à la Vlad, o Imperador. É a dualidade entre o mundo sóbrio e o elemento artificial que não deveria estar ali. O monstro maléfico das profundezas do seu pesadelo que não deveria fazer parte daquele mundo, mas faz.
Em suma, Nosferatu (2024) é um grande filme. Uma obra que tem consciência do seu nome e da história da sua arte. Presta uma grande homenagem ao que veio antes, seja o filme original ou o livro que iniciou essa jornada toda. Isso tudo, claro, sem deixar de ser assustador. Um terror amedrontador, que permanecerá na sua cabeça por dias, mesmo após os créditos rolarem.
Filme: Nosferatu Elenco: Lily-Rose Depp, Nicholas Hoult, Bill Skarsgård, Aaron Taylor-Johnson, Willem Dafoe, Emma Corrin Direção: Robert Eggers Roteiro: Robert Eggers Produção: Estados Unidos Ano: 2024 Gênero: Fantasia, Terror Sinopse: Thomas Hutter, um jovem corretor de imóveis, é enviado para o castelo de um enigmático conde, um vampiro, para negociar uma propriedade. Classificação: 18 anos Distribuidor: Focus Features Streaming: Indisponível Nota: 10 |