CRÍTICA – O ABRAÇO DA SERPENTE

CRÍTICA – O ABRAÇO DA SERPENTE

Ser envolvido pelo abraço da serpente é algo vital e urgente para a humanidade neste século. O filme “O Abraço da Serpente”, indicado ao Oscar de melhor filme internacional em 2016, do diretor colombiano Ciro Guerra, acompanha Karamate, um xamã que vive isolado na floresta amazônica e é atravessado pela visita de dois pesquisadores, “homens de ciência”, em dois momentos de sua vida, o primeiro em 1908 e o segundo 40 anos depois. Ambos buscam a planta yakruna, o etnógrafo para tentar se curar e o biólogo para tentar sonhar.

O filme se dá a partir dessas relações de busca, de descoberta, de aprendizado e de conflito, a violenta relação colonial, apesar de complexa, no fim é vida contra morte, é preto no branco. A escolha da fotografia do filme em P&B carrega esse e muitos outros possíveis encaminhamentos, escolher filmar as vivas paisagens da Amazônia dessa forma é quase despi-las de suas aparências, de suas superfícies, para olhar para o imanente, para a aura espiritual dessa mata, dessas águas, desse cosmos. Reconhecer vida, além da humana, de forma radical, sem vírgulas nem concessões, em pé de igualdade, é algo que o Ocidente Eurocristão não está acostumado a fazer. Em “O Abraço da Serpente” toda forma de vida tem cinza e é cinza, matiz de preto e branco, como nas fotografias antigas, como o que Karamate chama de “chullachaqui”, nos lembrando que mesmo sob uma representação de viés realista, esse é só um filme, são só imagens, que mesmo cheias de significâncias são vazias e ocas.

Acompanhamos buscas, em diferentes linhas temporais, que aparentemente apartadas vão se entrecruzando como rios sinuosos. Todos personagens centrais buscam algo, talvez não exatamente o que acreditam estar buscando, mas são carregados de ideais e grandes motivações, algumas mais egóicas que outras, missões pontuais mas que refletem visões, vontades e lutas de nível planetário, no caso de Karamate e Manduca, missões que naquele contexto tem um sentido realmente heróico. Esse filme vai no sentido contrário das narrativas clichês em que um branco ocidental perdido na vida e com sentimentos de vazio vai para um lugar dito exótico na busca de se encontrar e achar maneiras de cumprir seu caminho. Nesse longa colombiano, o protagonismo, a grande busca e a real missão estão nas mãos do xamã, que mesmo sendo dotado de muitos conhecimentos, não perde sua humanidade, ou melhor, para não tratar de forma antropocêntrica, Karamate não perde a possibilidade de errar e, assim, não perpetua uma falsa ideia de guru que tudo sabe.

O filme é movido num ritmo relativamente tradicional, com uma narrativa de cenas encadeadas por tensão e resolução numa progressão clássica de desenvolvimento das personagens, mas que se destoa um pouco apenas pelo entrelaçamento temporal. “O Abraço da Serpente” trabalha com a valorização de ideias de mundo contracoloniais, mas se mantém dentro de certos moldes, ele não busca ser um filme propriamente sensorial, tendo momentos pontuais de contemplação fortemente atrelados à narrativa. Este não é um demérito, Ciro Guerra opta por contar uma jornada e contar a história sob um olhar ideológico anticolonial, sob pontos de vistas compartilhados por personagens dispares numa zona cinza, de certo afeto ou parceria, entre o embate radical, preto no branco, mas sob um protagonismo indígena, para assim, recontar a história da América e estabelecer um filme histórico com sofisticação e capacidade de abrangência para torná-lo marco histórico no cinema colombiano, latino e mundial, cenário onde filmes com estes temas e personagens são escassos. A história da Amazônia não pode ser contada apenas pelo cinema de um alemão.

Para além de histórico, o filme é extremamente contemporâneo. Vivemos uma era de exaustão e crise no modo de produção capitalista ao lado de um momento de desencanto e encanto com o modelo desenvolvimentista como alternativa de esquerda. Simplificando bastante sem intenção de criar dicotomias, um campo marxista com um polo que reitera o desenvolvimento das forças produtivas, tomando como inspiração o modelo chinês, por exemplo, já no outro polo, um marxismo da desacelaração produtiva, guiado por princípios do bem viver, fruto de cosmologias dos povos indígenas, ecossocialismo, lógicas comunitárias e autogestão…

No filme temos o embate de formulações de mundo opostas. Quando Karamate questiona o biólogo sobre quantas margens tem o rio, ali estão em jogo duas visões, uma eurocristã monoteísta, da verdade única, da ciência exata e absoluta, da onipotência humana, da ideia de tempo linear progressivo, contraposta a uma politeísta, das confluências e concomitâncias, do tempo cíclico, do humano enquanto parte e etapa mutável de um cosmos de seres. As pesadas malas com livros e documentos que os pesquisadores carregam, a tradição escrita materializada frente a concepção de tradição oral que Karamate leva consigo. Tantos elementos nesses personagens, tanta falta que os seres desenvolvidos sentem, como o biólogo não conseguem sonhar, de tão desenvolvidos estão do mundo, do cosmos.

Oito anos depois de seu lançamento, o filme de Ciro Guerra se mostra cada vez atual, carregando questões latentes para a humanidade, que é convidada a ir de encontro com o abraço da serpente, dessa cobra grande que é veículo de passagem para uma condição humana, uma passagem criadora de mundo e vida, se envolver nesse abraço. Depois de acompanhar “o que move mundos”, voltar a sonhar.


Filme: El abrazo de la serpiente (O Abraço da Serpente)
Elenco: Nilbio Torres, Antonio Bolívar, Jan Bijvoet, Brionne Davis, Miguel Dionisio Ramos.
Direção: Ciro Guerra
Roteiro: Cristina Callego, Ciro Guerra
Produção: Colômbia
Ano: 2015
Gênero: Drama, Aventura, Biografia
Sinopse: A história épica do primeiro contato, encontro, aproximação, traição e, eventualmente, amizade que transcende a vida, entre Karamakate, um xamã amazônico, último sobrevivente de seu povo, e dois cientistas que, ao longo de 40 anos, viajam pelo Amazonas em busca de uma planta sagrada que possa curá-los. Inspirado nos diários dos primeiros exploradores da Amazônia colombiana, Theodor Koch-Grunberg e Richard Evans Schultes.
Classificação: 12 Anos
Distribuidor: Diaphana Distribution
Streaming: Amazon Prime Vídeo
Nota: 10

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