CRÍTICA – O APRENDIZ

CRÍTICA – O APRENDIZ

Era claro que o filme que ilustra a frase “Não é possível chegar no topo sem sujar as mãos” precisava ser uma biografia sobre ele. O Aprendiz

Viciado na ganância em ascensão, o jovem Trump poderia até não ser intelectual, mas incorporava bem os saberes maquiavélicos. A meritocracia, para ele, é fruto da frieza em conquistar tudo através de acordos sem a necessidade do uso da moral, afinal, a conquista do sucesso e do domínio não chega através de caridade. “Atacar, atacar e atacar” – como leciona seu tutor, o advogado Roy Cohn, vivido por Jeremy Strong, que não sabia do monstro que estava levando à ascensão, e muito menos do controle de Trump no partido Republicano que o levaria à Casa Branca no século seguinte (e em potencial reeleição).

O Aprendiz (2024) é um projeto cinematográfico financiado em partes por Dan Snyder, empresário pró Trump, que atualmente processa a produção pois estava crente de que o diretor iraniano-dinamarquês Ali Abbasi toparia realizar uma propaganda que enalteceria o alaranjado loiro. Ninguém dos quase 20 produtores executivos recusou a grana, óbvio. Mas um fato é curioso: não temos aqui uma ilustração necessariamente pejorativa de Donald. Há, inclusive, em alguns momentos, uma controversa humanização de um dos nova-iorquinos mais intocáveis que já pisara na face da terra.

Captado através de rolos de película analógica quando se passa nos anos 70, e granulado VHS nos anos 80, há uma imersão significativa numa Nova York imoral que era território fértil para o surgimento de um predador sociopata e megalomaníaco. Ali Abbasi põe em prática um estilo Succession de idas-e-vindas, com os zooms hiperbólicos e a estética crua e ágil; e a escolha adotada envolve corretamente o paço a paço de uma escalada da base até o topo da pirâmide, permitindo a acidez necessária levando em conta nosso infame protagonista adepto ao spray de cabelo. “É um babaca, mas um babaca esperto”.

Alguma motivação para a persistência insana de Donald em impressionar tudo e todos é pincelada, mas nem mesmo um raio-X da psiquê de Trump se conformaria com a teoria de que a falta de orgulho de seu pai é que seria responsável pela formação de um ganancioso compulsivo viciado em enganar os outros. A explicação pode ser mais simples: em sua essência, Trump é um ser apático, e foi muito bem compelido a nunca se conformar com sua posição atual; a sempre querer mais. Isso criou um constante afastamento dele consigo próprio. E é bom saber que seu intérprete, Sebastian Stan, tinha consciência disso.

A atuação é fantástica, e encaminha com muita justiça uma indicação ao Oscar. Diferente de muitas cinebiografias que almejam uma imitação minuciosa, Stan foca mais na aura do que numa reprodução. Mas ainda assim, é interessante durante toda a projeção acompanhar os trejeitos, como o “biquinho” que Trump faz com os lábios durante suas falas. Mas nessa atuação, o que mais perturba é a gradual insensibilidade de Trump conforme a ganância o vai tomando conta. E essa transformação é muito sutil na enxuta montagem da dupla dinamarquesa Olivia Neergard e Oliver Bugge – as transições e os cortes entre épocas quase passam desapercebidos (a passagem anos 70 – 80 é formidável) e o ritmo nunca cansa, nas econômicas 2 horas de duração, das quais de maneira igualmente desapercebida, a maquiagem e a visagem põem o predador Trump cada vez mais parecido com um porco.

Como citado, o filme possui momentos emotivos. Mas são bem subjetivos. O advogado “sabe-tudo” Roy Cahn, de Jeremy Strong (inclusive, de Succession) é uma figura bem complicada. Ele é um tutor maligno, certamente. Mas a AIDS o enfraquece estrondosamente durante a rodagem – simultaneamente à ruindade de Trump que vai aumentando. E nada como falta de lealdade para um falso conservador, certo? As discussões entre os dois são lamentáveis pois escancaram o quão intocável e indecente é Trump, que abandona Roy no momento mais delicado. Contudo, Donald não é um estereótipo nesse filme, e dá pra sentir que, lá no fundo, existe 1% de humanidade, apesar de aprisionada em uma banha de gordura bem grossa. “Se cuida, Roy”, diz Trump, genuinamente, após abandoná-lo. E ele sabia que Roy era homossexual. Tempo depois, tenta voltar atrás da antiga amizade, mas as coisas não são mais as mesmas.

Numa referência de montagem a lá Poderoso Chefão, em que Trump faz uma lipoaspiração intercalada com os sensíveis últimos momentos de Roy (como na cena do batismo intercalada com a vingança das 5 famílias em Chefão), podemos subtrair que é um filme não apenas sobre a degeneração de um mau-caráter obscurizado pelo ideal do sonho americano, mas também sobre como as pessoas que nós conhecemos mudam, nesse caso, pra pior.

Não temos uma enxurrada de detalhes, e muito menos você sairá da sessão sabendo tudo sobre Trump. É um recorte enxuto numa experiência visualmente agradável e ágil (com uma câmera muitas vezes The Office), que remete a um filme de máfia mas sem as mortes. Maria Bakalova, como Ivana Trump, tem charme mas não tem muito para desenvolver. A trilha-sonora eleva bastante certas passagens, acrescendo em elegância. Como filme sobre política, não tem a relevância de um Todos os Homens do Presidente (1976), mas possui uma estética tão única quanto e é certamente mais divertido.


Filme: The Apprentice (O Aprendiz)
Elenco: Sebastian Stan, Jeremy Strong, Maria Bakalova, Martin Donavan
Direção: Ali Abbasi
Roteiro: Gabriel Sherman
Produção: EUA
Ano: 2024
Gênero: Drama, História
Sinopse: Um jovem Donald Trump e sua ganância por poder no final dos anos 70 enquanto seguia os ensinamentos maquiavélicos do advogado Roy Cohn.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Diamond Films
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *