CRÍTICA – O BARÃO

CRÍTICA – O BARÃO

A adaptação do romance Drácula (1897, Bram Stoker) teve inúmeras criativas e diferentes formas de se manifestar nas telas de cinema. A personagem tomou o imaginário popular, contemplando desde os filmes de horror às sátiras cômicas que usam dos elementos estereotipados para promover o riso. E, interessantemente, nunca me vejo exausto de assistir qualquer coisa que envolva essa grande lenda vampiresca, mesmo que a qualidade seja, para dizer, no mínimo questionável em sua qualidade. O mais importante é ressaltar que não é o caso aqui, pois “O Barão” é uma surpresa e tanto no sentido positivo!

Não há nada de novo em termos de narrativa, pode-se dizer que é quase um ipesis litteris do romance original, dialogando muito com os recortes de texto promovidos em Nosferatu (1922, F. W. Murnau) e, claro, com elementos autorais da própria obra que conectam com o contexto de criação e lançamento do longa-metragem. E esses elementos autorais somados às escolhas estéticas fotográficas é o que nós trazemos aqui para dialogar sobre e, claro, divulgar uma obra desconhecida do público geral que merece mais reconhecimento.

O primeiro elemento que devemos ressaltar em O Barão é o processo de intertextualidade percebido no longa-metragem por dialogar com tantas referências e inferências estético-visuais, havendo uma dupla adaptação imbuída em sua manifestação: Drácula, que já foi exposto aqui previamente, mas, também, a adaptação do romance homônimo O Barão (1942, Branquinho da Fonseca), o qual dialoga com referências narrativas ao primeiro romance sobre vampiros. Tanto filme quanto livro fazem parte do ethos criativo português contemporâneo, envolvendo principalmente as questões da ditadura fascista que Portugal vivenciou durante o longo período de 1933 a 1974 – chamada de Estado Novo e com o codinome de salazarismo por conta do ditador Antônio de Oliveira Salazar.

Na corrida de qual regime totalitário no século XX foi mais atroz, violento e opressor, os portugueses não saem perdendo por muito; é no contexto de perseguição, prisões compulsórias, desaparecimentos e execuções, que O Barão tentou se manifestar através da produtora estadunidense Valerie Lewton, que vivia em Portugal e conheceu o livro graça ao marido que era português. E por que tentou? Bom, porque uma produção com claras ousadias críticas e visuais em relação ao contexto político-social vivenciado pela população portuguesa não seria bem-visto aos olhos do Estado Novo, resultando em uma boa parte do filme destruído, os atores internacionais deportados e o elenco português preso e torturado, com alguns inclusive desaparecidos e provavelmente executados.

Anos após o evento, em 2005, parte das filmagens é recuperada juntamente com o texto/argumento, o que desperta o interesse no resgate da obra levando Edgar Pêra a refilmar o projeto original. Assim, o filme é a expressão da intertextualidade quase em sua máxima, havendo processos entre processos das obras de referências e inferências, além é claro do próprio peso histórico no momento de concepção original do longa-metragem. Então, vamos viajar por dois aspectos: forma-conteúdo. Primeiramente, apelaremos à forma, observando os elementos estéticos que compõem essa narrativa e a construção de mundo maravilhosamente gótica que predomina até mesmo na aura do longa-metragem.

Já é notado em sua apresentação o uso das cores pretas e brancas, dialogando com essa historicidade estética dos dias do cinema-mudo e, talvez, do período de filmes mais renomado que é o Expressionismo alemão. Iluminações contrastantes, aproveitando-se das sombras, ressaltam as características do gótico, em que castelos, sombras, escuridão e seres misteriosos espreitam pelas periferias do mundo e do próprio pensamento humano. O longa-metragem usa e abusa dos silêncios e da contemplação, apelando para a sensação quase onírica das idas e vindas do nosso protagonista, um inspetor de escolas primárias com a responsabilidade de viajar por todo o país que se depara com o vilarejo no qual vive a autoridade nomeada como “O Barão”.

Técnicas de montagem relembram a criatividade quase infinita do cinema-mudo para elaboração dos cenários, jogos de perspectiva e efeitos especiais. A união dessa sensação quase caricata dos cenários dotados de estranheza e belezas sombrias com o enfoque especial aos diálogos e expressões dos atores forma um panorama imersivo em sua narrativa e ambientação. As transposições de imagens, que, às vezes, misturam as personagens, algo parecido com os jogos de espelhos, denotam o caráter fronteiriço que a obra busca: o que é real? O que é sobrenatural? Assim, essas dúvidas atingem seu clímax ao termos contato cada vez mais íntimo com a figura do Barão, ser misterioso, ditatorial que domina as mentes daqueles que habitam o vilarejo e região.

Essa mescla fronteiriça de realismo e sobrenatural, pode ser especificada como “Realismo Mágico”, em que elementos sobrenaturais coexistem na realidade empírica, mas, ao mesmo tempo que está concreta em preceitos do real, existem pistas e sugestões ao longo da obra que podem direcionar o público justamente ao contrário. Esse sobrenatural parece viver no periférico da obra, sempre transicionando entre o que poderíamos chamar de sonho, alucinações ou epifanias do inspetor que devaneia sobre aquele que busca, sobre os seus próprios desejos e ainda flerta com suas ideias autoritárias e controladoras. É diluído ao ego do Barão que o consome de pouco em pouco, fazendo a própria mente do protagonista viver nas sombras, viver naquilo que não é distinguível entre o real e a ilusão. Na atmosfera de suspense predomina, afinal, a figura do Barão, que se mostra quase senciente sobre as presenças e eventos do vilarejo; a escuridão que emana da própria personagem toma aquela realidade, dominante e opressora, silenciando, ocultando e desaparecendo com aqueles que ousam questionar essa figura, que se alimenta da vitalidade do povo por meio somente de sua presença.

Chegamos à encruzilhada das duas divisões previamente estabelecidas. Na forma, houve essa escolha estética do gótico dialogando com muitas referências anteriores e, simultaneamente, elaborando uma visão autoral que respira sombras, silêncios e sugestões do terror clássico, mas não se esquece do elemento político da realidade em que o filme foi concebido. Edgar Pêra não se esqueceu do resgate ao período histórico específico e, com a intencionalidade de buscar esse passado, projeta nos dias contemporâneos a devoção a esses seres obscuros que conquistam a população e os dominam pela psique levando a sociedade para as sombras.

É o espectro de uma figura apegada ao passado que se recusa a morrer, devorada pela nostalgia e saudosismo de uma glória romântica que ficou para trás; figura que ignora todas as contradições e vive isolada em sua Torre de Babel distanciada do mundo, porém ambicionando o mundo e conquistando uma mísera região – onde vive e conhece os segredos da obscuridade utilizando-os a favor de sua expansão egóica sobre todos os outros indivíduos. O Barão é essa figura quase ancestral que, através das luzes, é velha e ao mesmo tempo jovem; é impositiva e assustadora, mas leve e charmosa; sabe erguer e diminuir os tons da própria voz para nos consagrar o prazer de ouvi-lo e cair em suas armações. O Barão é um vampiro clássico, porém dotado da perspicácia dos sedutores, longe da figura monstruosa de Nosferatu, pois, conquista sem poderes sobrenaturais óbvios, andando pelas sombras e sugestionando sobre o mundo.

O Barão é uma experiência sensorial única que transporta o público para o passado do próprio cinema sem abandonar as possibilidades técnicas dos dias contemporâneos, utilizadas para reforçar esses elementos antigos, usando e abusando dos jogos de câmera, das ilusões óticas e das sagazes iluminações sugestivas. As expressões dos atores embalsamam o peso da experiência de refilmar aquilo que foi perdido, com o cargo de entender que aqueles participantes da tentativa original provavelmente perderam suas vidas em nome do ato político de protestar. O Barão nos conquista pelos efeitos práticos, pela trilha sonora, pelos monólogos dos personagens que ousam expor seus pensamentos e reflexões ao público, quase que implorando para que entreguemos as respostas que nunca chegaram neles. Mas existe um que tem consciência de nós e não anseia por resposta: o Barão sabe e detém nossos olhares na tela; ele tem consciência do público e busca-nos seduzir para suas ideias serpenteantemente maliciosas…

Filme: O Barão
Elenco: Nunu Melo, Mariana Albuquerque, Marcos Barbosa, Paula Serrano, Vitor Correia, Paulo So, Jorge Prendas, Miguel Sermão
Direção: Edgar Pêra
Roteiro: Edgar Pêra, Luísa Costa Gomes
Produção: Portugal
Ano: 2011
Gênero: Terror, Suspense, Drama, Mistério
Sinopse: O Barão é um filme português de 2011, que conta a história de um vampiro que aterroriza os habitantes de uma região montanhosa. É a refilmagem neurogótica de uma produção de terror proibida pelo regime salazarista durante a Segunda Guerra Mundial.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Cinemate
Streaming: Não disponível
Nota: 9.0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *