CRÍTICA – O DUBLÊ

CRÍTICA – O DUBLÊ

Na década de 1980, “The Fall Guy”, série televisiva, conquistou o público ao explorar as aventuras de um dublê de Hollywood envolto em mistério e ação. Décadas depois, David Leitch revisita esse conceito em “O Dublê”, um filme que celebra a coragem dos profissionais que executam as sequências mais impactantes do cinema de ação.

Estrelado por Ryan Gosling, Emily Blunt e Aaron Taylor-Johnson, “O Dublê” acompanha as aventuras do dublê Colt Seavers (Gosling). Depois de um acidente num set de filmagem, o experiente dublê é chamado de volta por sua ex-parceira e agora diretora Jody Moreno (Blunt) para substituir o personagem principal Tom Rider (Taylor-Johnson) nas cenas de ação mais exigentes do novo longa-metragem. No entanto, quando Tom desaparece sem deixar vestígios, Colt se vê envolvido em uma conspiração. Enquanto realiza acrobacias impressionantes durante as filmagens, ele deve resolver o mistério por trás do desaparecimento de Tom, ao mesmo tempo em que tenta reacender seu romance com Jodi, tentando escapar ileso de uma situação igualmente perigosa em que é colocado.

Ex-dublê em Hollywood, o diretor David Leitch, utiliza “O Dublê” para homenagear sua antiga profissão, muitas vezes negligenciada pela indústria cinematográfica. Embora não seja o foco principal, o filme também serve como um tributo velado aos dublês, com alfinetadas sutis aos bastidores da sétima arte. Uma piada sobre a impossibilidade de o protagonista ganhar um Oscar, devido à falta de reconhecimento da Academia pela categoria de dublê, exemplifica esse tributo nas entrelinhas aos profissionais por trás das cenas de ação.

Não só isso, mas ao conceber sequências de ação memoráveis, Leitch não poupa esforços para enaltecer o ofício que exerceu durante boa parte de sua carreira, utilizando dublês talentosos em vez de apostar demasiadamente nos efeitos visuais gerados por computador. É quase uma crítica sutil à tendência crescente de diminuir esses valorosos artistas em prol da tecnologia digital. Não que esta não tenha que existir, mas ela deveria ser utilizada como apoio e não muleta, como tem acontecido com boa parte dos blockbusters; o efeito especial pelo efeito especial. Ainda assim, muito mais do que uma “denúncia” à desvalorização constante, “O Dublê” se impõe verdadeiramente como uma vibrante celebração ao trabalho árduo e os riscos enfrentados por essa classe fundamental do cinema de ação.

É principalmente por meio dessas impressionantes sequências de ação que “O Dublê” presta sua mais visceral homenagem à arte dos dublês. David Leitch, conhecedor íntimo dos desafios e riscos dessa profissão, concebe cenas emocionantes, todas realizadas por autênticos profissionais da adrenalina. O diretor freia o uso excessivo de efeitos gerados por computador para dar merecido espaço aos talentos reais. Uma escolha que beira a provocação numa era de dublês digitais. E por falar em provocação, o longa também transita com desenvoltura entre o humor e os demais gêneros. Ele passeia descontraidamente da ação hiperbólica ao romance piegas, sem se prender a sutilezas de coesão narrativa. É tudo muito proposital e divertido, como na cena em que Colt e Jody se reencontram e, subitamente, a câmera congela para capturar o clima entre os dois. Momentos assim geram riso justamente pela ‘não naturalidade’ com que o filme alterna entre gêneros distintos.

É quase como se o personagem Colt Seavers, representasse não apenas simbolicamente os dublês, mas despertasse no espectador um sentimento de apreço por essa categoria profissional como um todo. Muito disso se deve à atuação cativante do próprio Gosling, que empresta autenticidade à camada de heroísmo discreto de Colt. Por outro lado, Aaron Taylor-Johnson faz da caricatura do ator mimado Tom Ryder um inteligente comentário sobre como os dublês costumam ser vistos e menosprezados, ao mesmo tempo que ridiculariza o próprio personagem. Essa caricatura, no entanto, é bem dosada, sem cair em exageros. Emily Blunt também se destaca, concebendo uma Jody interessantíssima. A atriz consegue dosar muito bem os lados forte e inseguro de sua personagem – uma mulher totalmente segura de si e com personalidade de sobra para dirigir um filme blockbuster -, mas que ao mesmo tempo demonstra fragilidade e insegurança quando o assunto é o antigo romance com Colt.

É inegável, entretanto, que David Leitch demonstra muito mais habilidade na concepção de impressionantes sequências de ação do que no desenvolvimento de tramas complexas. Enquanto as cenas eletrizantes repletas de acrobacias e perseguições prendem a atenção do espectador de forma magistral, a narrativa que as amarra por vezes se mostra um emaranhado de reviravoltas e conspirações que o próprio diretor parece não saber muito bem como desatar. Fica evidente que Leitch trata a história principal quase como um acessório. A trama acaba servindo apenas de pano de fundo para as sequências de ação que são o verdadeiro foco.

Ao relegar a trama principal a um papel secundário, servindo apenas como pano de fundo para as acrobacias inventivas, o espectador também a percebe como menos relevante. Quando o filme tenta trazer o foco de volta para essa trama, algumas cenas de ação perdem sua coesão e não se encaixam bem no contexto. É como se o pano de fundo oscilasse entre ser coadjuvante e protagonista. Assim, quando a trama  recebe destaque e as cenas de acrobacia se tornam secundárias, estas parecem desconectadas e deslocadas dentro da narrativa. O equilíbrio entre história e ação se perde, deixando o espectador às vezes desconectado diante da transição entre esses dois elementos fundamentais.

É interessante notar que, dentro da concepção de David Leitch de criar cenas de ação estonteantes com uma trama que as sirva de pano de fundo e não o oposto, em seu trabalho anterior “Trem Bala” o diretor conseguiu ser mais coeso nessa proposta. Lá ele tinha uma ideia narrativa mais sólida, apesar do uso de diversos flashbacks que por vezes soavam como engodo, e conseguiu conduzir essa ideia com maior fluidez. Já em “O Dublê” há certo exagero na tentativa de amarrar essas impressionantes sequências de ação a um enredo que se mostra repleto de reviravoltas, amarras que muitas vezes soam frouxas demais. A trama extravasa em complexidade desproporcional à sua resolução apressada. Embora, em “O Dublê”, as sequências de ação são ainda mais deslumbrantes que em “Trem Bala”.

No entanto, ainda assim o filme se mostra muito competente. Enquanto a ação continua sendo o grande espetáculo a se sobressair, com a trama realmente servindo de plano de fundo, “O Dublê” atinge momentos de puro deslumbre cinematográfico. As cenas de manobras radicais e perseguições frenéticas são hipnotizantes, realizadas com enorme perícia técnica. Acaba sendo um triunfo do espetáculo acrobático sobre pequenas falhas narrativas.


Filme: The Fall Guy (O Dublê)
Elenco: Ryan Gosling, Emily Blunt, Aaron Taylor-Johnson, Hannah Waddingham, Winston Duke, Stephanie Hsu, Teresa Palmer, David Collins, Zara Michales
Direção: David Leitch
Roteiro: Drew Pearce
Produção: Estados Unidos
Ano2024
GêneroAção, Aventura, Comédia
Sinopse: Colt Seavers é duplo e, como todos os duplos, é explodido, baleado, envolvido em acidentes, arremessado por janelas e lançado das maiores alturas, tudo pela nossa diversão. E agora, recém-saído de um acidente que quase pôs fim à sua carreira, este herói de classe trabalhadora tem que encontrar uma estrela de cinema desaparecida, desvendar uma conspiração e tentar reconquistar o amor da sua vida, enquanto ainda faz o seu trabalho. O que pode dar certo?
Classificação14 anos
Distribuidor: Universal Pictures
Streaming: Indisponível
Nota: 7,0

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