A palavra-chave é humanidade. Ela pode ser encontrada nos cantos mais longevos, esquisitos e excêntricos. Às vezes se manifesta na mente criativa daqueles que são considerados bizarros, estranhos e surreais. Em Eraserhead (1977) nos deparamos com o pesadelo de uma vida urbana que corrompe o próprio público com sua surrealidade abstrata e aterrorizante de um personagem vivendo no próprio ceio da malignidade de uma dimensão paralela, a qual, simultaneamente, transmite toda a sujeira e corrupção da contemporaneidade. Já em Homem Elefante (1980), nos deparamos com a simplicidade horrenda do pior e melhor dos seres humanos.
Volto, enfim, leitores com muito pesar no coração e, ao mesmo tempo, alegre por ter vivido os tempos de David Lynch enquanto um dos meus diretores favoritos nas telonas. Em 2025, perdemos essa mente criativa para os ethos da eternidade, que tanto contribuiu para concretizar as realidades oníricas nas telas de cinema e nos seriados. Comprometo maior constância na elaboração das críticas e comentários sobre esse diretor e superei o passo mais difícil de todos que foi reassistir Homem Elefante. Esse é um daqueles filmes que entra na lista das obras que causam tamanha impressão sentimental/emocional que se torna pesado reassisti-lo por conta da mensagem transmitida. Junto de Ladrões de Bicicletas (1948), O Túmulo dos Vagalumes (1988), Vá e Veja (1985) e Réquiem para um Sonho (2000), não é fácil se programar para tamanha pancada emocional ser revisitada.
O longa-metragem é uma espécie de autobiografia baseada na vida de John Merrick (John Hurt), figura histórica que intrigou durante muito tempo médicos e cientistas por conta da natureza de suas deformidades corporais e ósseas. Sofrendo uma experiência de ojeriza social por conta da “excentricidade” de seu corpo, recebeu o apelido de homem elefante e foi, durante grande parte de sua vida, atração em um show de aberrações. O cirurgião Sir Frederick Treves (Anthony Hopkins) o resgata dessa condição, porém impõe dolorosas experiências em nome de estudar e tentar compreender a figura, havendo uma abertura para a vivência de John nos meios da nobreza inglesa com sua imagem sendo coberta por panos para esconder as feições deformadas.
A crítica que é elaborada pelo roteiro é mais do que visível e de retirar o fôlego de qualquer indivíduo dotado de empatia e sensibilidade com o outro: a falta de respeito com as diferenças, com aquilo que foge do que é considerado “natural” ou “normal”. John Merrick simboliza em sua experiência essa não sensibilidade da sociedade em relação à sua existência, ignorando por completo todos os sentimentos, vontades e necessidades que ele, como qualquer outro indivíduo social, possui. É doloroso ao longo de muitas cenas perceber essa condição sofrida, que o afastou, durante sua vida, de construir qualquer relação social “normalizada” com outros indivíduos, ainda mais aqueles que chegam a ter contato com sua aparência para além do pano que a esconde.
Merrick é uma figura que desconhece a felicidade, uma relação familiar ou o calor do corpo de um par amoroso ou, até mesmo, 0 acesso a qualquer tipo de educação formal apesar de John possuir tanto potencial. O mais difícil é quando nós ficamos sabendo que nunca poderia dormir em uma cama, pois, caso isso fosse feito, nunca mais acordaria em vida por conta de sua condição física. O lazer de deitar-se, espreguiçar-se e ficar enrolando nunca lhe foi dado, tanto pelas condições que vivia enquanto estava perambulando com a trupe circense e mesmo quando é “resgatado” pelo cirurgião. Em poucos minutos de tela automaticamente é construído um vínculo com a personagem que carregará nossos corações consigo, nos emocionando e cultivando certo carinho e, ao mesmo tempo, estranheza por ver que atualmente muitas questões relacionadas aos espectros daqueles que são denominados como “diferentes” ou “aberrações” – por aqueles que constroem o que é considerado “normal” – persistem na contemporaneidade.
A atuação de John Hurt enche as telas brilhando através da maquiagem, tão bem executada que se torna impossível reconhecê-lo, e é realçada pela parceria de Anthony Hopkins e as várias reflexões e estranhezas que a figura do homem elefante gera no cirurgião. É uma via de mão dupla delicadamente trabalhada em que John Merrick vê sua “humanidade” sendo resgatada pelo cirurgião (que o faz ter acesso a uma esfera social antes jamais imaginada) e, ao mesmo tempo, o cirurgião percebe todos os meandros dolorosos daqueles que são considerados excêntricos, diferentes, monstruosos e bizarros aos olhos dos indivíduos sociais comuns. E, mesmo tão distante de qualquer condição social “normal” de vivência na sociedade, John Merrick se mostra em diversas cenas ser o único “humano” presente, o único distante de qualquer comportamento bestial. Por isso, quando presenciamos cenas de violência, cenas em que os indivíduos que o rodeiam tratam Merrick como uma monstruosidade, a palavra chave “empatia” entra em jogo no filme, enchendo os corações e os olhos daqueles que ousaram testemunhar sua narrativa através do longa-metragem.
Veja o exemplo através do vídeo com uma das cenas mais icônicas e marcantes do cinema realçando a atuação incrível de John Hurt:
“Eu não sou um animal. Eu sou um ser humano!”
Sua existência para sempre foi eternizada nessas telas em que David Lynch, através do roteiro, tenta denunciar as mazelas e feiuras da sociedade humana e conquistar o público para emocionar os corações daqueles que ainda tem esperança na humanidade. Quem realça esse poder de resgate, essa luz esperançosa, que apaga os tons melancólicos e depressivos totais do filme, é a personagem Mrs. Kendal (Anne Bancroft), que é, junto de Frederick, um dos poucos indivíduos que sinceramente empatiza e se preocupa com John Merrick. É aquela que o faz sentir emoções, que o faz se entender respeitado e querido por outro indivíduo. Às vezes é um abraço, um olhar, um gesto de mínima consideração para que nós, enquanto público, simplesmente sintamos as lágrimas escorrerem por ver ainda esperança naqueles que verdadeiramente se preocuparam com a condição de nosso protagonista, perante tamanha bestialidade da sociedade com aqueles que são diferentes.
Quando chegamos ao encerramento do longa-metragem em que John Merrick se vê confortável no ato de dormir em uma cama, ousando quebrar a regra que lhe foi imposta, não é um ato melancólico (afinal, testemunhamos um suicídio), mas uma jornada final que ele toma por plenitude. Enfim, enxerga-se como um indivíduo que merece um descanso, que merece dormir, que finalmente se tornou humano e aceitou as próprias condições graças a toda empatia e carinho que encontrou em sua jornada. Ficamos sem fôlego, ficamos tristes e felizes. Dói a aceitação, mas, para aquele que tanto sofreu, ir para uma jornada no além vida dormindo é mais do que uma grande vitória diante de um mundo que tanto o violentou – e ansiava por violentar ainda mais pelos interesses da ciência e da medicina. Ele redescobre a humanidade e simultaneamente a ensina novamente para aqueles que estenderam os braços para compreender e se apaixonar por sua personalidade…
Aqui, David Lynch entrega um recado quase humanitário. Caminha distante dos tons depressivos e surrealistas de Eraserhead, prontificando em uma mensagem esperançosa, mas nada ingênua, a (talvez) história com mais pés nos chãos de sua carreira em termos de realismo. Não existem momentos surreais, abstratos ou com interações entre personagens que beiram ao caricato. É um drama existencialista sobre as condições de um indivíduo perante uma sociedade já adoentada pelas mazelas dos preconceitos e violências com o outro. É perceber o quanto a alteridade destrói as identidades dos que não estão ajustados. Isso nunca foi deixado de lado em sua obra desde o Homem Elefante, manifestando-se de diferentes maneiras criativas e sempre realçando o caráter imaginativo do diretor. Talvez seu único deslize esteja na próxima obra… E ainda digo talvez, afinal a especiaria pode ter ludibriado a minha mente.
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Filme: The Elephant Man (O Homem Elefante) Elenco: John Hurt, Anthony Hopkins, Anne Bancroft, John Gielgud, Freddie Jones, Lesley Dunlop Direção: David Lynch Roteiro: David Lynch, Eric Bergren Produção: Estados Unidos Ano: 1980 Gênero: Drama, Obra de Época Sinopse: John Merrick nasceu desfigurado e parecia estar condenado a uma triste existência como atração de um show de aberrações. Porém, um cirurgião londrino o introduziu à sociedade. Apesar de suas dolorosas experiências, Merrick é gentil e inteligente e se torna convidado frequente nos salões vitorianos, mas precisa cobrir totalmente as feições deformadas. Classificação: 10 anos Distribuidor: Universal Pictures Streaming: Prime Video Nota: 9,0 |