CRÍTICA – O MEDO DEVORA A ALMA

CRÍTICA – O MEDO DEVORA A ALMA

O Medo Devora a Alma (Fassbinder, 1974) leva o espectador para uma Alemanha pós-nazista, onde Emmi (Brigitte Mira), uma viúva na faixa dos sessenta anos, trabalha como faxineira. Um dia, ao entrar em um bar, a mulher conhece Ali (El Hedi ben Salem), um jovem imigrante marroquino. Os dois se encontram por acaso, mas a solidão e o medo que cada um deles sente os une. Apesar das barreiras existentes entre os dois, o casal desenvolve uma conexão intensa e inesperada.

Marcas de preconceito

Fassbinder apresenta um país ainda desolado pela guerra. Entretanto, não é uma desolação física — que poderia ser vislumbrada através de destroços e ruínas. A maneira como a sociedade do filme interage com o mundo revela os rastros deixados pelo período fascista do país. São marcas eugênicas, racistas, que vão se manifestando nas pessoas de modo tão velado quanto destruidor. Da mesma maneira com a qual o monstro que se esconde debaixo da sua cama, e puxa seu pé a noite, revela suas garras depois que você esquece que ele está ali; uma aura de morte e violência, que se esconde ao mesmo tempo que teme não ser vista. O preconceito daquelas pessoas quer se fazer presente, mesmo que elas não o queiram admitir.

O Medo Devora a Alma (Fassbinder, 1974) revela rastros intrínsecos dessa discriminação em cada canto e cada pessoa da cidade. Por consequência, existe uma atmosfera palpável de preconceito e opressão, que constantemente trabalha para isolar ambos os personagens. Uma aura tão avassaladora que isola-os de maneira diferente em momentos distintos; mas sempre os mantendo solitários. Ou seja, por vezes eles são separados um do outro e ilhados; não podem permanecer juntos. Em contrapartida, quando estão acompanhados, como um casal, são retirados à força da sociedade; sem direito de integrar aquele mundo. 

O isolamento em O Medo Devora a Alma

Tudo isso adquire uma presença ainda mais forte pela maneira com a qual o diretor constroi uma mise-en-scène opressora. Seja pela decupagem, que por vezes separa os personagens dentro do espaço do mesmo plano, assim como em outros momentos apresenta apenas um deles dentro do quadro, em um foco solitário. Ou, conforme, pelo enquadramento pequeno e apertado, que engole e prende os protagonistas. Em outras palavras, O Medo Devora a Alma (Fassbinder, 1974) não tem medo de evidenciar o quanto aquela situação exclui o casal.

Medo como motivação

Em determinado momento, Ali cita um provérbio de sua terra natal (que também nomeia a obra): o medo devora a alma. Inegavelmente, o medo é a força motriz no filme. O medo devora a alma. Engole-a e regurgita-a como algo novo, modificando-a. Dessa maneira, o medo age na obra de Fassbinder como um conversor. Ou seja, ele pega aqueles personagens e os transforma em algo novo. Assim sendo, tal transformação acaba propulsionando-os à situações que talvez não se envolvessem sem o medo.

Isto é, em contextos regulares a aproximação do casal talvez não aconteceria — Ali poderia buscar alguém de sua idade e Emmi, sem sua solidão, correria o risco de ser mais uma dos reacionários que atacam seu companheiro. O medo de estar sozinho em um mundo que não parece lhes querer — em um país estrangeiro ou em uma sociedade que ignora a terceira idade —  acabou por os unir. O medo consumiu suas almas o suficiente para que seus prejulgamentos fossem apagados e, por fim, os aproximasse. 

A cola de O Medo Devora a Alma

Uma pessoa mais velha, que carrega em si as mazelas da solidão proveniente da velhice. Em contrapartida, um homem mais novo, que deseja encontrar o seu lugar e a sua dignidade, ser percebido pelo mundo como uma pessoa. Mesmo que as preocupações e os medos dos personagens não sejam expressos de forma tão direta através de palavras, Fassbinder transforma-os em uma cola para o filme todo. A imagem e o som (ou a ausência dele) constantemente refletem os temores deles. 

Assim sendo, as escolhas de O Medo Devora a Alma (Fassbinder, 1974) estão constantemente lembrando o espectador, através da linguagem cinematográfica, como o medo daqueles protagonistas agem neles e como o ambiente fortalece esse medo. Desse modo, as inseguranças não servem apenas para aproximar o casal principal, mas preenchem todo o ar que os envolve. Isto é, o contexto completo o qual os personagens estão inseridos transborda tais temas. 

Presença do medo

Posteriormente, o casal entra em embate por consequência do esvanecimento desse terror. Ou seja, quando se acostumam com a situação e deixam de se sentir solitários, os conflitos surgem. Velhos preconceitos voltam a brotar em Emmi; o que assusta Ali, e seu temor o afugenta de perto de sua companheira. Por consequência, o medo de perder o marido faz Emmi reavaliar suas atitudes. Fassbinder não nos deixa esquecer em nenhum momento que o medo está por trás de tudo e todos. Entretanto, também esclarece que nem sempre é algo negativo. Sentir medo também é uma maneira de autopreservação. Medo abre os olhos. Aqui, através do medo, personagens antes solitários constroem superação e amor.


Poster do filme "O Medo Consome a Alma" de Rainer Werner Fassbinder

Filme: O Medo Devora a Alma
Elenco: Brigitte Mira, El Hedi ben Salem, Irm Hermann, Barbara Valentin, Elma Karlowa, Anita Bucher
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder
Produção: Alemanha
Ano: 1974
Gênero: Drama
Sinopse: Ao entrar em um bar, uma viúva conhece um jovem imigrante. Mesmo com suas diferenças, um grande amor surge entre os dois.
Classificação: 12 anos
Streaming: Looke
Nota: 9,0

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