Uma das atrações do 19º Festival de Cinema Italiano, em formato online e presencial, “O Penitente” (2023) é dirigido e estrelado por Luca Barbareschi. É a história do psiquiatra judeu Carlos Hirsh – papel do próprio diretor –, que se envolve no julgamento de um paciente latino acusado de matar oito pessoas; a trama discute ética, mídia e preconceitos numa narrativa em que os diálogos e as interpretações fundamentam o desenrolar dos acontecimentos. O paciente faz parte da comunidade LGTB e a cobertura midiática incorpora o sensacionalismo enquanto os advogados pressionam pelo depoimento de Hirsh a favor do acusado.
O ponto de partida é a peça de teatro The Penitent – A Rational Man, escrita por David Mamet – também autor do roteiro do filme. Conhecendo a obra de Mamet e sua conexão com os temas policiais e os dilemas éticos que marcam a sociedade estadunidense ao discutir trabalho, crime e as ações individuais frente à pressão das instituições, o espectador já tem uma noção do que vai encontrar na produção: diálogos precisos (que oferecem a oportunidade do elenco construir interpretações marcantes) e “clima teatral” – que precisa se equilibrar nos enquadramentos e movimentos de câmera para evitar a sensação de monotonia, de um filme “parado”. E o título da peça entrega o conflito entre racionalidade e fé que marcará as decisões de Hirsh.
A história se passa em Nova Iorque, nos tempos atuais, com a perspectiva de revelar as razões do comportamento do psiquiatra dividido entre o que a mídia quer para garantir audiência, a lei exige para estruturar um julgamento justo e a sociedade espera que um “homem responsável” faça para o bem geral. Além disso, o novelo da trama é temperado pela crença religiosa de Hirsh e pela necessidade de respeitar o juramento de Hipócrates e suas diretrizes profissionais.
Obviamente, a pressão sobre a família do protagonista cresce ao longo da trama e sua esposa vai sofrendo os efeitos do desgaste social e psicológico que aumenta à medida que o marido tenta manter o comportamento mais coerente com as suas convicções. Catherine McCormack, conhecida pelas personagens de “Coração Valente” (1995), “A Sombra do Vampiro” (2000) e “Jogo de Espiões” (2001), assume o papel revelando a irritação e a insatisfação com os segredos e ações individualistas do marido; e peso das cobranças vai conduzindo-a para atitudes extremas.
Esta é a terceira investida de Barbareschi na direção. Natural de Montevidéu, capital do Uruguai, o ator foi um dos protagonista do polêmico “Holocausto Canibal” (1980), de Ruggero Deodato, e teve que se apresentar num programa de televisão para confirmar que estava vivo evitando que o diretor fosse condenado pela morte do elenco durante as filmagens. Entre os vários papéis que desempenhou, pode-se lembrar do “italiano do Lago Tahoe”, aparição bem secundária em “As Coisas Mudam”, elogiada comédia policial dirigida por David Mamet, em 1988. Talvez tenha surgido aí a possibilidade de uma colaboração entre dramaturgo e ator – que foi concretizada 35 anos depois.
Em 2008, Luca Barbareschi foi eleito para o parlamento italiano pelo partido de Silvio Berlusconi, O Povo da Liberdade. Em 2010, ingressou no novo partido Futuro e Liberdade, de Gianfranco Fini. Uma rápida pesquisa no Google – e na Wikipedia – revela as inclinações excessivamente direitistas das organizações políticas a que o ator foi filiado. Berlusconi e Fini se identificavam com o novo fascismo que prosperou na Itália desde o início do século 21, e, embora tenha abandonado a política, em 2013, Luca revela a sua percepção sobre “o sistema judicial intrusivo e a mídia manipulada” no filme.
Numa entrevista durante o Festival de Cinema de Veneza, em 2023, o diretor afirmou: “Quando a vida privada de alguém entra em colisão com o mecanismo de um sistema de comunicação que não está interessado na apresentação objetiva das notícias, mas na difamação, ou seja, na provocação visual e intuitiva, empenhado em fazer julgamentos em vez de informar, surge um conflito. E se um sistema judicial identifica uma vítima que não é uma das vítimas reais e um culpado que não é o verdadeiro culpado, então se transforma em uma verdadeira tragédia. Mas por que isso acontece? Segundo Mamet: Porque a natureza humana é cruel“.
Enfim, “O Penitente” traz considerações bem atuais sobre a sociedade midiática e polarizada em que vivemos se apresentando como um drama de texto consistente e interpretações marcantes. Os diálogos confirmam a origem teatral, que trabalha a tensão em ambientes fechados – e, até mesmo, claustrofóbicos – sem esquecer as revelações finais no encerramento do filme. É uma obra que permite conhecer o que a Itália oferece em sua produção cinematográfica contemporânea – compromisso mais que respeitável do Festival.
Filme: The Penitent (O Penitente) Elenco: Luca Barbareschi, Catherine McCormack, Adam James, Adrian Lester Direção: Luca Barbareschi Roteiro: David Mamet Produção: Itália Ano: 2023 Gênero: Drama Sinopse: Nova York. A carreira e a vida pessoal de um psiquiatra começam a desmoronar após ele se recusar a testemunhar a favor de um ex-paciente violento e instável, responsável pela morte de várias pessoas. A perseguição midiática e a pressão do sistema judiciário se somam ao dilema moral do psiquiatra, que se apoia no juramento de Hipócrates para se defender das acusações, pressões e traições de todos os lados em busca da verdade. Classificação: 16 anos Distribuidor: Indisponível Streaming: Festival de Cinema Italiano (site) Nota: 7,0 |