CRÍTICA – O ROTEIRO DA MINHA VIDA – FRANÇOIS TRUFFAUT

CRÍTICA – O ROTEIRO DA MINHA VIDA – FRANÇOIS TRUFFAUT

“O Roteiro da Minha Vida – François Truffaut” (2024), de David Teboul, é um dos destaques do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano, considerado o maior evento da sétima arte gaulesa fora da França. As exibições estão acontecendo entre os dias 7 e 20 de novembro em diversas cidades brasileiras. O documentário “O Roteiro da Minha Vida” propõe uma jornada pelo cinema francês, através da vida e da obra de um dos seus maiores realizadores: François Truffaut.

Como Duda apontou em sua crítica de “Ainda Estou Aqui”, o cinema é tecido de memórias. No entanto, ao contrário do filme do Walter Sales, “O Roteiro de Minha Vida” se constrói quase inteiramente de memórias de seu personagem e do espectador. Em vez de impor o seu próprio olhar, o autor busca “se anular”, permitindo que a sua inspiração ganhe vida e que Truffaut enuncie suas memórias quase por si mesmo. O narrador apenas empresta a sua voz oferecendo uma nova chance ao cineasta de contar a sua própria história. Nesse cuidadoso trabalho de resgate e memória, Truffaut finalmente pode concluir o já iniciado projeto, a sua autobiografia, interrompida pela morte tão precoce.

Tanto memória quanto cinema escapam aos paradigmas do que é linear e imparcial. As imagens e as lembranças surgem e desaparecem, ecoando em nossos pensamentos, ressonando durante toda a nossa existência. O presente e passado, até mesmo o futuro, competem por nossa atenção e, em um processo de seleção, filtramos o que absorvemos, priorizamos impressões – gostos, emoções – e momentos, às vezes conscientemente, às vezes de maneira acidental. É nessa relação fluida entre memória e cinema que “O Roteiro da Minha Vida” ganha a sua forma, rejeitando o linear, o objetivo e o imparcial, refletindo a própria natureza das memórias. Em vez de uma redundante exposição de documentos históricos, comum aos documentários convencionais, somos convidados a embarcar numa jornada pelo íntimo e pela memória de François Truffaut.

O documentário nos apresenta a figura do cineasta por meio de cenas dos seus próprios filmes, entrevistas e materiais escritos ou destinados a François Truffaut, em um esforço para reconstruir a sua memória. Revivemos momentos emblemáticos, que são lembrados pelo espectador, como a longa sessão de entrevistas com Hitchcock – que se estendeu por 8 dias e deu origem ao livro “Hitchcock / Truffaut: entrevistas” – e sua participação em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977), de Steven Spielberg. Nesses momentos, vai se delineando uma relação de consumo mais evidente, oferecendo ao público uma espécie de fan service.  No entanto, essa atenção ao público integra a essência do filme convocando o espectador a participar desse exercício de memória. Funciona, assim, como um convite para que o amante da sétima arte reviva suas memórias cinematográficas.

O cineasta francês, também crítico da Cahiers do Cinema e fundador da Nouvelle Vague, encontrava na realidade a sua principal fonte de inspiração. Mas não se tratava de uma simples reprodução do real, e sim da busca pelo cotidiano como fonte de verdades fascinantes. A sua própria realidade era base primária para os temas, personagens e emoções que explorava. Sua infância desestruturada, às vezes beirando a marginalidade, ocupa o centro do seu filme mais célebre “Os Incompreendidos”. Grande parte dos eventos é inspirada em sua própria vida e juventude, como a passagem por um centro de reeducação juvenil e o constante conflito com os pais. A infância, assim, se torna uma temática recorrente e fundamental na filmografia de Truffaut. Como aponta Marcelo Muller, a vida e a obra de Truffaut se retroalimentam, dinâmica que constitui a própria tese do documentário.

A primeira sensação que o documentário de David Teboul nos transmite é de que ele nunca avança, permanecendo preso a uma única parte da vida do cineasta francês: a infância. Embora o tempo passe, os primeiros anos da vida de Truffaut nunca deixam de ser uma temática central, e sempre encontramos em tela o jovem cineasta – ou seu alterego Antoine Doinel (vivido por Jean-Pierre Léaud). Como já disse, as memórias ecoam durante toda a nossa existência. No caso de Truffaut, os momentos conturbados dessa etapa da sua vida ressoam de maneira angustiante e constante. Esse ciclo de retorno à infância, presente no documentário, busca transmitir a incessante revisitação da infância e dos traumas que ela representa para o cineasta, característica da própria trajetória de François.

“O Roteiro da Minha Vida”, que à primeira vista pode parecer um simples exercício de memória, oferece uma reflexão sobre o cinema em diversos momentos. O documentário traz passagens em que Truffaut discute as representações do amor e da sexualidade no cinema, destacando como a Nouvelle Vague buscava formas mais autênticas e coerentes com a experiência humana. Algumas temáticas importantes sobre a vida do cineasta são suprimidas propositalmente, como a sua rixa com Godard. Por um lado, isso afasta um debate desnecessário e infantil. Por outro lado, a presença de Godard é deliberadamente suprimida, como se amizade entre os dois tivesse perdido a relevância nas memórias de Truffaut, reflexo da distância e do desentendimento que a briga e o tempo impuseram.

Outra temática recorrente na vida e obra de Truffaut é a morte e a perda, que deixaram marcas profundas no autor. Nunca conheceu seu verdadeiro pai, e essa ausência representou a sua primeira grande perda. Seu padrasto, Roland Truffaut, nunca se tornou uma verdadeira referência masculina e paterna para François. Mais tarde, André Bazin, crítico que acreditou no talento do jovem crítico, partiu cedo demais, aos 40 anos de idade, antes de poder assistir “Os Incompreendidos”. Como uma canção de tristeza e mistério, o próprio cineasta é atingido pela doença que levaria à sua morte prematura aos 52 anos de idade. Como uma sombra sutil que se insinua, essa sucessão de perdas também o envolve, sem que a tragédia obscureça a sua arte.

“O Roteiro da Minha Vida” não lamenta a morte do cineasta, mas o homenageia, transformando a sua despedida em uma reflexão sobre a essência da vida. Assim como nos filmes de Truffaut, aqui a perda se converte em uma celebração da existência vibrando uma complexidade que transborda.


  Filme: O Roteiro da Minha Vida – François Truffaut
Elenco: François Truffaut, Alfred Hitchcock, Jean-Pierre Léaud
Direção: David Teboul
Roteiro: David Teboul, Serge Toubiana
Produção: França
Ano: 2024
Gênero: Documentário
Sinopse: Truffaut ainda tem muito para nos contar sobre si mesmo, sobre a vida, sobre a infância, sobre nós… Quase quarenta anos após a sua morte, o principal diretor da Nouvelle Vague relembra sua infância e os primeiros trinta anos de sua vida. Baseando-se em escritos inéditos do cineasta, o diretor David Teboul explora a ligação entre seus filmes e as correspondências para construir o filme com um ângulo intimista.
Classificação: Livre
Distribuidor: Bonfilm
Streaming: Indisponível
Nota: 8,0

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