O Segredo das Joias (1950), dirigido por John Huston, conta a história de Doc Riedenschneider (Sam Jaffe). Após ser solto da prisão, o homem se encontra com um antigo associado, Alonzo Emmerich (Louis Calhern) para planejarem o roubo de um banco. O grupo tem como alvo um cofre que possui um estoque de joias e pedras preciosas.
O início do cinema
Na década de 1920, o Expressionismo Alemão, com todo o seu fatalismo e os seus usos de chiaroscuro — técnica de manipulação da iluminação para gerar efeitos específicos com o contraste da luz e das sombras — tomou espaço no cinema mundial. Uma década depois, em um Estados Unidos regado por tensões políticas ao invés de álcool (momento em que a Lei Seca estava em vigor), Hollywood fazia nascer a tendência do Cinema Gangster. Filmes que exploravam a figura do criminoso como seu protagonista e abraçavam uma atmosfera urbana decadente e narrativas repletas de corrupção e violência.
Origem do Noir
Viajamos no tempo por mais alguns anos, e nos deparamos com o cinema Noir. O Noir absorveu certa bagagem do Cinema Gangster, concebendo filmes com uma visão cínica de um mundo regado de violência e imoralidade. Contudo, enquanto o Cinema Gangster usualmente retrata a ascensão do criminoso (as vezes até com um certo glamour), o Noir foca suas lentes em uma figura icária, que já derreteu suas asas e caiu ao mundo. O protagonista não é um criminoso, pelo contrário, muitas vezes é um detetive. Entretanto, sempre um anti-heroi. Uma pessoa que já foi surrada pelo mundo, cuspida na sarjeta, e consumida pelo pecado e pela sujeira da cidade.
Assim, o Noir estabelece uma certa diferença temática para o Cinema Gangster (ainda que se mantenha próximo). Porém, algo que os separa ainda mais é a forma. O Noir viaja para o passado e resgata alguns aspectos do Expressionismo Alemão. O chiaroscuro volta a dominar a superfície da imagem; a atmosfera perde o glamour do crime e reflete as consequências sombrias da ilegalidade; as composições visuais (sobretudo ao brincar com a sombra) enfatizam a paranoia e a tragédia; o tom é desesperançoso, pessimista. De certo modo, é como se o Cinema Gangster e o expressionismo tivessem um filho, e o garoto nascesse com lápis de olho, franja, e um fone tocando My Chemical Romance.
Relíquia Macabra como base para O Segredo das Joias
Sob essa perspectiva, Relíquia Macabra (1941), do mesmo diretor de O Segredo das Joias (1950), é muitas vezes referenciado como o início do subgênero. Seu personagem principal, interpretado por Humphrey Bogart, é um detetive particular durão, astuto e moralmente ambíguo. Ele não se encaixa no arquétipo tradicional de heroi, mas também não é um gangster. Apenas alguém que opera em um mundo corrupto e joga conforme as próprias regras. John Huston rejeita um mundo idealista e o transforma em um local egoísta e ganancioso, com uma estética escura e claustrofóbica. Planos fechados, iluminação dramática e composições que criam tensão são influências diretas do Expressionismo. Nesse universo, confiar em alguém pode ser fatal, e ter uma visão cínica da vida é essencial para sobreviver. A ideia de um destino inescapável, onde os personagens são conduzidos por suas próprias falhas morais, é um elemento central do Noir.
Navegando pelo tempo uma última vez (eu juro!), saímos do DeLorean para a década de 1950. Finalmente (ufa!) chegamos em O Segredo das Joias (1950). Pensando em toda essa jornada histórica que acabamos de percorrer, o longa de Huston conversa com o subgênero que ele mesmo ajudou a fundar. O filme não chega a se enquadrar por completo como um Noir, mas sem dúvida os resquícios são perceptíveis. John Huston constroi uma história também fadada à tragédia. Repleta de paranoias e traições, reforçadas por movimentos e enquadramentos. Um mundo de egoístas e corruptos; homens que nada querem senão sua própria vitória. Uma atmosfera que permite com que o diretor brinque com a iluminação, escurecendo os pontos específicos do quadro necessários para reforçar sua emoção.
Visão otimista sobre o crime
Contudo, seus protagonistas não são detetives, não são homens que uma vez foram virtuosos e caíram na perdição. Huston retoma a origem do arquétipo e traz para seu filme a figura dos gangsters. Criminosos que uma ora foram a estrela mais brilhante de Hollywood, mas que duas décadas depois se encontraram um pouco mais sucateados. Da mesma maneira, o modo com o qual O Segredo das Joias (1950) encara a jornada dessas pessoas não é de todo pessimista, como seria em um Noir. Existe uma certa pontada de esperança, que muito remete ao Cinema Gangster.
Ou seja, um plano mirabolante tecido por homens entusiasmados e esperançosos sobre seu resultado. Otimismo, o assalto vai dar certo, seremos ricos! Não chega a glamourizar tão diretamente como poderia ocorrer no Cinema Gangster, mas sem dúvida não oferece, ao menos de início, uma visão trágica sobre aquele crime. O Segredo das Joias (1950) tem um olhar um pouco inocente nesse aspecto, e genuinamente oferece ao espectador a possibilidade de acreditar na melhora da vida daqueles personagens. Sob o mesmo ponto de vista, também não julga aqueles atos. Se num mundo Noir tudo seria encarado como corrupção e imoralidade, aqui existe uma visão um pouco mais positiva.
A honra dentro de O Segredo das Joias
O grupo principal acaba sendo até mesmo virtuoso por conta dessa perspectiva. As traições e as artimanhas sempre partem daqueles que não fazem parte do núcleo primário, e os bandidos tem uma relação de camaradagem entre si. Aquela velha história de “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão” não existe aqui. Ladrão não rouba ladrão, os personagens são cúmplices, navegando em um mesmo barco e mantém uma relação pautada nisso. Assim, há uma espécie de honra que contradiz o caráter moral do que seriam os protagonistas do Noir.
Inspeção da psique
Conforme a trama se desenrola, as coisas começam a, inevitavelmente, darem errado. Huston se aproveita disso para explorar mais a psique e o drama do núcleo principal. Parece que, quanto mais as coisas acontecem, mais o filme tem o ímpeto de testar as virtudes desses personagens. Ver até onde a sanidade deles aguenta. O Segredo das Joias (1950) utiliza do medo que os personagens sentem para revelar minúcias sobre a personalidade de cada um. Como eles reagem ao perigo? Para onde correm? Enfrentam ou se escondem? A partir dessa lógica vai capturando cada vez mais o espectador e envolvendo-o dentro dessas particularidades através de um apego emocional com os personagens e as situações.
Afinal, o que John Huston faz com O Segredo das Joias (1950) é quase como um estudo de personagem. O diretor regressa ao seu passado Noir, materializa essas referências em um amálgama repleto de bagagem do Cinema Gangster (momento histórico no qual ele ainda não era um diretor), para explorar as reações desses homens. Primeiro estabelece suas virtudes e depois, a partir do medo e do fracasso, verifica o quão forte elas são.
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Filme: The Asphalt Jungle (O Segredo das Joias) Elenco: Sterling Hayden, Louis Calhern, Sam Jaffe, Jean Hagen, James Whitmore, John McIntire, Marilyn Monroe Direção: John Huston Roteiro: Ben Maddow, John Huston Produção: Estados Unidos Ano: 1950 Gênero: Crime, Drama Sinopse: Após sair da prisão, Doc Riedenschneider planeja assaltar um banco para roubar joias. Classificação: 12 anos Distribuidor: MGM Streaming: Looke Brasil Nota: 7,0 |