CRÍTICA – O SEQUESTRO DO PAPA

CRÍTICA – O SEQUESTRO DO PAPA

O Sequestro do Papa, filme dirigido por Marco Bellocchio, começa com uma cena que, aparentemente, não tem nada de mais. Nela vemos a empregada Anna Morisi (Aurora Camatti), ao se despedir de um amante, espiar seus patrões, Salomone Mortara (Fausto Russo Alesi) e Marianna Mortara (Barbara Ronchi), rezando em frente e para um bebê, filho do casal. Mas o que ainda não sabemos é que esta cena servirá como um catalizador de toda a história, pois em poucos minutos de filme, ao se passar 6 anos, um comandante, junto com uma força policial, bate à porta da família Mortara para levar consigo o pequeno Edgardo (Enea Sala) a pedido do Padre Inquisidor, o Monsenhor Feletti (Fabrizio Gifuni). Esta sequência, com tantas idas e vindas de personagens, se alimenta da pouca luz, do espaço reduzido e da numerosidade de personagens no quadro para, de forma crescente, aumentar a tensão.

Salomone Mortara e sua família são judeus vivendo em uma Itália na época do Risorgimento e da liderança religiosa do Papa Pio IX (Paolo Pierobon). Entretanto esta parte da história, embora Bellocchio informe ao espectador que aquilo que estamos a assistir aconteceu de fato, é retirada. Tudo o que acontece com a família Mortara está um tanto desconexa com tudo o que está acontecendo na Itália. As revoltas que irão ocorrer são apenas em relação ao Papa Pio IX e, de certa forma, motivadas por suas ações tais como a que retirou o pequeno Edgardo de sua família.

O Sequestro do Papa demonstra a força do cristianismo, o poder de alienação e o mal que dali provém, ainda que tudo seja feito em nome de “Deus”. O filme se passa, ou melhor, se inicia em 1852, mas ao olharmos para o nosso país hoje, em pleno 2024, não nos parece uma história impossível de se repetir e nem tão distante do que vivemos atualmente. Há uma infinidade de notícias que são veiculadas todos os dias com acusações dos mais diversos abusos praticados por pastores da Igreja Evangélica. Novamente a história se repetindo: a força da religião, o poder da alienação e o mal que dali provém, ainda que tudo seja feito em nome de “Deus”.

Edgardo fora batizado, enquanto bebê e sem seus pais saberem, pela empregada Anna Morisi, uma mulher cristã, e por isso o Papa o reivindicou. Vamos, então, acompanhar a luta dessa família para tentar ter seu filho de novo com eles. Entretanto, ainda que superficialmente, há ali uma clara tensão entre as ideologias praticadas pelo Papa que vão de encontro com a existência de outras religiões, aqui sendo exemplificada pelo judaísmo praticado pela família Mortara.

O estilo capitular de contar essa história acaba servindo, óbvio, como o próprio passar do tempo, mas também para entendermos, pela ausência dessa passagem, o peso que cada dia, cada mês e cada ano tem tanto para a família quanto para Edgardo. Enquanto que vemos a resiliência do pai, da mãe e do primogênito tentando de todo modo o resgate do filho, começamos a perceber o envolvimento de Edgardo com toda a simbologia cristã. Mesmo acompanhando toda sua luta para permanecer com suas crenças, sabemos que esta é uma luta covarde e desproporcional.

Bellochio constrói de modo muito opressor toda a ambientação ao redor do Papa Pio IX e este, por si só, já é uma figura sedenta de poder e sem muitos escrúpulos. E nesse sentido sinto muita afeição pela intepretação do diretor. Não havia outro modo, senão esse, de trazer este personagem para tela naquele momento em que é retratado. Embora pareça, algumas vezes, apenas como um disciplinador, mirando sempre nas palavras de Deus, é fácil percebermos, quando manda um dos jovens lamber o chão desenhando 3 cruzes com a língua, que o que o alimenta é ser venerado, idolatrado como se fosse a própria versão de Deus aqui na terra.

O diretor para além do desenho que faz do Papa Pio IX eleva o filme com determinadas cenas que apresentam diversos elementos seja para convencer o espectador pelo drama mais simples que existe, como a dor de uma mãe ao ver seu filho sofrendo, e este sendo arrancado por duas vezes dos braços dela por aqueles que deveriam, sempre, defender este laço inquebrável entre uma mãe e sua cria. Mas também consegue construir um paralelismo maravilhoso quando ao mesmo tempo vemos o julgamento do Padre Inquisidor, o qual sai vitorioso, deixando Salomone em prantos por ter perdido a chance de se aproximar um pouco mais da possibilidade de ter seu filho de volta e a cena da crisma de Edgardo, tendo ali, também, um ponto de impossibilidade de retrocesso. Tais cenas, entrelaçadas pela montagem, evoca no espectador os sentimentos de desânimo e desamparo tais quais ambos os personagens, pai e filho, cientes ou não, estão sentindo.

O maior problema de O Sequestro do Papa é a busca pelo clímax que nunca é encontrado. Há, através da sucessão de “insurgências”, uma ideia de que algo maior está a ser arquitetado, mas naquela que teria sido a maior revolta, o desfecho é insatisfatório, pois o encontro dos irmãos, embora crível ao pensarmos no tempo já decorrido, é extremamente frio e os diálogos sequer ajudam para um envolvimento maior entre o que está na tela e quem assiste. É bem verdade que ao fim, O Sequestro do Papa é honesto com sua proposta, trazendo a resiliência do povo judeu, bem como a intromissão do cristianismo, tentando a todo custo, penetrar no maior número de pessoas.

Em um recorte de mais de 20 anos (1952 – 1978) O Sequestro do Papa desenvolve sua trama com muita destreza. Por mais que a história da família Mortara esteja um pouco deslocada do que ocorria na Itália naqueles tempos, ela é cativante ao mesmo tempo que é, também, dolorosa. São muitas as emoções que afloram ao ver, mesmo com toda a cadência idealizada por Bellochio, como aquela família se reajusta e como o pequeno Edgardo cresce naquele ambiente hostil e acolhedor ao mesmo tempo. O poder da Igreja Católica impressiona e o diretor faz questão de utilizar diversas imagens para demonstra-lo. De fato, mesmo com atuações bem sensíveis, com uma fotografia explorando bastante determinadas regiões das cidades, além de uma trilha sonora por vezes bem presente de modo a intensificar nossas reações, o que vemos é um diretor sabendo exatamente qual filme quer fazer e isso faz muita diferença.


Filme: Rapito (O Sequestro do Papa)
Elenco: Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Barbara Ronchi, Enea Sala, Fabrizio Gifuni, Aurora Camatti, Leonardo Maltese, Samuele Teneggi
Direção: Marco Bellocchio
Roteiro: Marco Bellocchio, Susanna Nicchiarelli, Edoardo Albinati
Produção: Itália, França, Alemanha
Ano: 2023
Gênero: Drama, História
Sinopse: A história de Edgardo Mortara, um jovem judeu que vivia em Bolonha, Itália, que em 1858, após ser batizado secretamente, foi tirado à força de sua família para ser criado como cristão.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 8,0

*Estreia dia 11 de julho de 2024 nos cinemas*

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