O Vício é daqueles filmes vampirescos para ter na manga quando envolve recomendar algo do gênero e a pessoa anseia por não ir no mais do mesmo, gerando até aquela vibe cult, da figura que conhece aquelas obras “diferentonas” que não chegam na boca do povo.
A perspectiva aqui de análise é novamente do crítico que revisita uma obra que havia guardado na memória com vários pontos altos. Terminei de assisti-la e digo: sobraram alguns pontos altos, mas simultaneamente um talvez amadurecer sobre a obra, ou, um crescimento pessoal em relação aos conteúdos artísticos que venho assistindo. Foi quase uma releitura de si mesmo. E esse mérito não advém da obra em si, mas, sim do contexto de revisitação.
O Vício se trata de um filme de terror participante do subgênero de vampiros que visa retratar a queda no vício bestial de sugar o sangue de suas vítimas daqueles indivíduos que são transformados na criatura . Retratado em uma Nova York decadente, suburbana e suja, relembrando toda decadência que foi massivamente registrada em diversas mídias ao longo da década de 1990 até a revitalização de seus espaços urbanos no início dos anos 2000. É a paisagem já testemunhada em Taxi Driver (1976) do Dir. Martin Scorsese, ou até mesmo nas animações desconhecidas Fritz The Cat (1972) e Heavy Traffic (1972), ambas do Dir. Ralph Bakshi. Nota-se que o Vício foi lançado a mais de 20 anos após as obras previamente citadas. Os problemas quase continuavam os mesmos – e ainda continuam nos dias de hoje, repaginados conforme o contexto da contemporaneidade. Quando somado esse recorte específico da ambientação com a escolha do uso monocromático das cores pretas e brancas, usando-se de jogos de sombras e luzes, existem reais cenas que promovem o prazer estético imagético. O ápice dessa beleza é manifestado na cena de transformação da protagonista, o famoso beijo do vampiro e o banquete na cena clímax em que o elenco de vampiros promove uma farto número de vítimas para comemorar a conclusão e respectiva aprovação da protagonista no doutorado. Evoca brutalidade e o peso da fome, o peso daqueles que caíram e aceitaram sua condição animalesca dali adiante.
Talvez esse seja o maior mérito somado à poucos momentos de seu discurso. Retratar uma desigualdade social dotada dos próprios vícios, uma natureza carregada de impulsos que veem a tapar nossas tristezas, decepções e melancolias. Nos viciamos em diferentes espectros que nos são fornecidos: jogos, comida, exercícios, drogas, bebidas, cigarros, sexo etc. ousando dizer que ninguém está a salvo desses impulsos. Esse paralelo se manifesta no conflito interpessoal da protagonista na condição em que se encontra, visando entender e materializar sua natureza bestial de além-morta, com a protagonista Kathleen Conklin (Lili Taylor) se entregando completamente as mazelas da eterna e imortal fome vampiresca.
O elenco do filme consta com nomes famosos da indústria: Christopher Walken, Lili Taylor, Edie Falco, Michael Imperioli (com a participação mais rápida do mundo), Annabella Sciorra. Existem cenas com destaque para suas atuações, porém, nessa revisitação ao longa-metragem, seu roteiro se tornou quase uma indigestão.
A sensação de vibe cult se tornou pejorativa, afinal, existe uma superfície que parece acrescentar tanto ao campo de discussão e reflexão que o filme propõe, mas, no fim é somente isso, uma superfície que a temática vampiresca foi usada de uma maneira a não construir absolutamente nada em torno do mito. Seu roteiro parece um ensaio acadêmico de um aluno recém-formado em filosofia – as protagonistas são doutorandas do respectivo curso – que resolveu usar das criaturas vampirescas para jogar uma inundação de ideias filosóficas em todo e absolutamente minuto possível.
É quase impossível relembrar alguma cena sequer em que as personagens não estão citando um grande autor ou indiretamente referenciando alguma ideia reflexiva das teorias sociológicas/filosóficas. Em dado momento isso se tornou irritante, pois, não existem interações “reais” entre as personagens que venha a construir suas personalidades, suas convicções e características enquanto indivíduos de uma história que visa construir uma identidade concreta que reflita o pacto ficcional com o público para que ele acredite que aquelas figuras ao longo da narrativa são o que são. Existe um ar de artificialidade intensa, buscando esconder essa falha através da exposição de discursos filosóficos e com as personagens referenciando sobre qual grande pensador está refletindo, porém, é superficial, beira a ser pedante. Em um breve resumo: muita informação e pouco conteúdo.
Toda essa carga informativa de reflexões filosóficas empobrecidas pela pouca profundidade que é dada acaba pior. Não bastavam os diálogos, pois, a prepotência de querer ser algo grandioso precisa de uma sustância imagética, estamos falando de cinema, não é mesmo? Assim, para acrescentar aos niilismos e ideias dos vícios fatais da humanidade, o nosso pior vício enquanto espécie – segundo o discurso exposto pelo longa-metragem – é a violência. Como isso pode ser transmitido para além das falas e atitudes da protagonista que transforma a todos de seu contexto em vampiros? Utilizar de imagens de verdadeiros massacres e genocídios históricos promovidos por determinadas sociedades. Testemunham-se imagens reais (e independente do contexto fortes) do Holocausto, dos massacres promovidos pelas tropas norte-americanas no Vietnã etc. que no fim saem pela culatra, promovem pouca sustância no discurso reflexivo que contempla o filme inteiro. É uma ferramenta fraca somada em um roteiro pedante que parece superficialmente carregado de grandes reflexões.
Por encerramento, há uma moral cristã imbuída que surge enquanto solução para essas mazelas da existência e dos vícios que corroem a humanidade. Estabeleço aqui não haver problema nenhum em filmes que utilizam das filosofias morais e éticas cristãs, mas em O Vício sua especificidade é a concretização máxima de sua superficialidade. Essa solução moral para os males que acometem a protagonista que entra em um colapso físico – sofrendo de uma overdose de sangue – encontra a solução para sua condição através da cristandade, havendo uma iluminação de seus pensamentos físicos e metafísicos. A cena de conclusão em que encara sua própria cova – durante o dia iluminado – representa seu renascimento enquanto indivíduo e o encontro de um equilíbrio psicossocial inexistente anteriormente por ser atormentada pelas ideias niilistas dos diversos filósofos que cita. Essa visão positivista da moral cristã – que é exposta anteriormente pela participação rápida de Michael Imperioli enquanto devoto panfletando a fé cristã e não cai na sedução da protagonista, promovendo um colapso nervoso na mesma por não compreender o porquê dele em específico não se tornar uma vítima – saem pela superficialidade. Qual é a resposta final para todos esses vícios que acometem a humanidade? Todos esses episódios do vício da sociedade na violência? Para a sede de sangue que acomete os vampiros? A cristandade. Relembra aqueles vídeos caseiros feitos pelas igrejas para dizer que a solução dos problemas socioemocionais que nos acometem (os extremos que nos tomam, os vícios que nos destroem) estão na fé cristã, que os soluciona pela presença de Deus, nos fazendo renascer enquanto indivíduos agora equilibrados e em paz de espírito consigo mesmo. A sensação é de um sentimento piegas e fraquíssimo que quase promoveu risadas em sua conclusão. Não fora trabalhada essa dualidade, não fora trabalhado esse discurso cristão filosófico e ainda gera uma problemática pesada:
Então os problemas que acometem os E.U.A – epidemia do crack, da AIDS, da cocaína, da heroína, da violência – principalmente através da caracterização de uma periferia nova yorkina (e da população predominantemente afrodescendente) é a sua falta de fé cristã? É para dizer no mínimo, no mínimo mesmo, prepotente e superficial. Com tanto conhecimento aparente de filosofia, reduzir o debate promovido em seu longa na imagem de cristo é ignorante, pois, é ignorar também todas as violências, hipocrisias e mentiras dotadas pela Igreja Católica e pelo cristianismo em si (vulgo promover paralelos com todas as polêmicas que o evangelismo tupiniquim promove em terras nacionais) historicamente. Inquisição, perseguição de outras crenças, colonização cultural e destruição de identidades originárias. Existirão contra-argumentos: “essas atitudes foram promovidas por instituições e não pela espiritualidade moral e ética cristã em si”, mas, quem incorpora essa imagem moral e ética de renascimento da personagem é a figura de um padre. Ela – Kathleen – toma a eucaristia e renasce das cinzas após sua decadência máxima. Ela renasce tal qual Jesus Cristo. Assim, o padre é a figura concreta e imagética institucional da Igreja Católica Apostólica Romana, logo é dotada de materialidade e historicidade e, relembremos uma última vez: não é uma historicidade pouco carregada de contradições, polêmicas e violências. A Igreja Católica e seus membros também possuem seus vícios, afinal, são seres humanos tais quaisqueres outros indivíduos dotados de racionalidade, consciência e contradições.
O Vício é problemático, pedante e superficial. Possui uma estética sedutora que, quando acessado seu conteúdo, encontramos mais problemas do que soluções para sua proposta reflexiva filosófica. É ofensivo até mesmo denominar suas discussões enquanto filosofia. São ideias jogadas para gerar uma aparência de alta intelectualidade.
Aparenta saber muito. Aparenta ser complexo. Aparenta ter soluções. Aparenta causar impacto.
No fim, seu impacto é um tiro pela própria culatra.
Filme: The Addiction (O Vício) Elenco: Christopher Walken, Lili Taylor, Edie Falco, Paul Calderón, Michael Imperioli, Annabella Sciorra Direção: Abel Ferrara Roteiro: Nicholas St. John Produção: Estados Unidos Ano: 1995 Gênero: Fantasia, Terror Sinopse: Kathleen é uma jovem de Nova York com doutorado em filosofia que precisa encarar uma nova forma de vida ao ser transformada em vampiresa após um ataque. Ela é forçada a lutar contra sua sede de sangue e tenta compreender a nova vida. Classificação: 18 anos Distribuidor: October Films Streaming: Indisponível Nota: 5,0 |
One thought on “CRÍTICA – O VÍCIO”