Onda Nova, dirigido por Ícaro Martins e José Antônio Garcia, acompanha as jogadoras do time de futebol feminino fictício, Gayvotas Futebol Clube. O grupo, em plena atividade durante a ditadura militar brasileira, enfrenta preconceitos e dificuldades dentro e fora de campo.
As pornochanchadas na ditadura
Produzido em 1983, o filme só chega ao público em 2025 – e não por acaso. Os censores da ditadura o consideraram “amoral” demais, interditando sua exibição. Repressão a obras artísticas? Nada novo sob o sol militar. O regime cortava com voracidade qualquer conteúdo “subversivo”, mas via as pornochanchadas com ambiguidade: por um lado, eram toleradas como distração inofensiva, uma certa forma de pão e circo; por outro, tinham limites. O erotismo podia escorrer, desde que não transbordasse. Assim, algumas coisas continuavam barradas, mesmo nas chanchadas, e eram modificadas ou completamente proibidas. Alguns diretores usavam essa brecha para esconder críticas e mensagens entre pernas abertas e piadas de duplo sentido.
Agora, com uma carinhosa restauração em 4K, Onda Nova ressurge como um recado do passado. E nada melhor que as palavras do próprio Martins para decifrá-lo: “É um filme onde o desejo assume o protagonismo, define e conduz as personagens e a narrativa. Mesmo não tratando diretamente de política, ao colocar o desejo como afirmação de identidade e de vida, Onda Nova é a própria negação da ditadura vigente na época. Por isso a censura não foi apenas a uma cena ou outra, mas ao filme inteiro. Foi considerado ‘amoral’ e interditado integralmente”. Ou seja: esse filme era perigoso não pelo que mostrava, mas pelo que celebrava.
Onda Nova e o desejo
Onda Nova é um filme que orbita em torno do sexo; não como mero recurso cômico ou apelo comercial, mas como força motriz da trama. Até o futebol, elemento central na vida das jogadoras do Gayvotas F.C., serve menos como esporte e mais como palco para possibilitar os desejos. O campo não é um espaço de regras esportivas, mas de transgressões: um lugar onde corpos suados, olhares cúmplices e a energia latente da juventude transformam cada passe e drible em pretexto para o erotismo. A câmera não espreita; celebra. O futebol, símbolo do ufanismo militar, vira território de insurgência. A cena em que um casal transa na quadra vazia é emblemática — o local, antes palco de disputas, vira território de liberdade sexual. O esporte, tão associado ao nacionalismo da ditadura, é ressignificado como espaço de prazer e rebeldia.
Resta perguntar: o que assustou tanto os censores? Afinal, pornochanchadas eram o pão e circo aceito pelo regime. Mas Onda Nova não se contentava em divertir. Seu crime foi expor a hipocrisia de uma ditadura que enchia estádios com gritos de “Brasil ame-o ou deixe-o”, enquanto apagava qualquer sinal de vida que não coubesse no manual da “família tradicional”. O filme não se limita a exibir corpos em êxtase; ele os politiza. Martins e Garcia não filmam o desejo como piada pronta ou fetiche barato, mas como arma.
A revolta de Onda Nova
As cenas não hétero, especialmente raras no cinema nacional da década de 1980, são afirmações de identidades marginalizadas. O sexo é ato de resistência. As jogadoras não fogem ao estereótipo de “mulheres fáceis”; elas o abraçam, subvertendo a moralidade opressora da época. A fotografia, restaurada em 4K, revela o que tentaram apagar: a beleza suja da resistência. Os closes nas genitais; os planos abertos do campo invadido por corpos em fúria; a luz que incendeia a película como se queimasse os decretos da censura. Tudo aqui é tátil — você sente o cheiro de grama e suor, o calor dos amores proibidos, o risco do prazer como ato político.
Aqui, o desejo é meio: a imagem transborda de tudo que a sociedade conservadora repudiava; mulheres que não pedem licença para gozar, relações que ignoram a heteronormatividade, um time que desafia o machismo estrutural do futebol. A ditadura militar reprimia qualquer discurso que os desafiasse; Onda Nova responde com corpos que se recusam a se calar.
Passado e presente
Entretanto, não é como se o longa fosse um manifesto didático. É um repúdio disfarçado de comédia erótica. Seu humor está no contraste entre as situações (o time se chamar “Gayvotas” já é um baita deboche) e a crueza da mensagem: em um país onde até o orgasmo era vigiado, gozar era subversão.
A proibição integral do filme pela censura não foi um acidente. Se outras pornochanchadas escapavam aos cortes por serem vistas como “inofensivas”, Onda Nova foi interditada justamente porque seu erotismo era perigoso. Como observa Ícaro Martins, o longa faz do desejo “a negação da ditadura”, e os censores entenderam isso muito bem. Enquanto outras pornochanchadas divertiam sem ameaçar, Onda Nova escancarava a hipocrisia de um sistema que usava o moralismo para controlar até o prazer. A restauração em 4K não apenas resgata um filme perdido, mas devolve ao público uma obra que, em 1983, já sabia que sexo, quando livre, é revolução. Em 2025, o filme chega como lembrança de que a liberdade sexual ainda é um jogo de cartas marcadas — e que o campo de batalha, hoje como ontem, segue sendo o corpo.
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Filme: Onda Nova Elenco: Carla Camurati, Tânia Alves, Vera Zimmermann, Regina Casé, Cristina Mutarelli, Caetano Veloso Direção: Ícaro Martins, José Antônio Garcia Roteiro: Ícaro Martins, José Antônio Garcia Produção: Brasil Ano: 1983 Gênero: Comédia Sinopse: Durante a ditadura militar brasileira, um grupo de futebol feminino enfrenta preconceitos e busca por liberdade sexual Classificação: 18 anos Distribuidor: Vitrine Filmes Streaming: Não disponível Nota: 8,0 |