CRÍTICA – OS CATADORES E EU

CRÍTICA – OS CATADORES E EU

A poética de quem encontrou no cinema, sua casa, e na arte, sua paz.

Catar e colher. A partir de uma pintura, Agnès Varda atravessa a França em busca de enxergar os diversos retratos sociais que convergem a um ponto em comum: o desperdício presente nos campos de produção e a hierarquia social que determina e perpetua segregações — seja face ao consumo alimentício ou diante da possessão de bens. O documentário nos apresenta catadores e respigadores, pessoas que recolhem tudo que ficou no chão após a colheita, com a intenção de venda, de consumo próprio ou de doação. No começo do filme, uma mulher diz que isso é uma prática milenar e uma tradição muito forte, contudo, em contrapartida, há a personificação do preconceito que rejeita a terra, os pés no chão e a relação direta com a natureza.

A obra que Agnès começa o filme falando é ‘As respigadoras’ (Des glaneuses, 1857) do pintor realista Jean-François Millet, que foi completamente mal recebida pela alta sociedade francesa na época de sua realização, isso porque Millet representou três camponesas colhendo espigas de trigo caídas no chão após a colheita. Ou seja, ele representou e nos permitiu imageticamente enxergar as camponesas, que eram da camada mais baixa da sociedade rural. O descontentamento com a obra se configura como a recusa da captação dessas vidas, se não há a possibilidade de representação, ou da existência de vozes, há o apagamento.

Aqui, a crítica ao capitalismo é feita com a maestria de uma artista, que ao invés de elucidar tudo de forma direta, nos permite construir referências e pensamentos. A diretora nos leva para uma feira ao ar livre, para estradas repletas de caminhões, para vislumbrar plantações enormes, e nos permite enxergar, com imagens e pessoas reais, aquilo que um texto qualquer não conseguiria. Varda nos apresenta o olhar sobre a persistência e a resistência contemporânea dos catadores, ela nos permite olhar a recuperação de coisas que os outros rejeitam, ela nos possibilita enxergar no lixo o sustento, ou até mesmo arte. Construindo um emaranhado de pensamentos a partir de uma pintura que ilustra uma palavra em um dicionário, perpassamos as vidas de camponeses, donos de terras, pessoas sem moradia, jovens anarquistas, advogados, promotores de direito à terra e à colheita, pessoas comuns da cidade. Ao som de um rap, nos damos conta que o filme não se limita apenas ao Catador de Alimentos, afinal, tudo é colheita e isso se configura como pertencimento ao mundo. 

‘Os catadores e eu’, sendo traduzido de maneira literal ficaria: ‘Os catadores e a catadora’ (Les glaneurs et la glaneuse). O título em francês, apesar de ter uma diferença sutil do português, transmite muito melhor o que Agnès quis dizer quando se intitulou uma Catadora. No primeiro título, temos a sua figura sendo colocada frente ao documentário, enquanto narradora e diretora, no segundo título, temos a sua figura sendo parte da história, enquanto pessoa e personagem. A coleta de imaginários, imagens e recortes de vidas configuram parte da essência indissociável que a diretora construiu ao longo de sua carreira. Dessa forma, chamar-se de “Catadora” é uma autoconsciência de si e de sua obra como um todo. Me encanta o fato dos trabalhos de Agnès serem todos sobre sua curiosidade diante do mundo, ela era maravilhada pelas pessoas que a rodeavam e mais ainda pelas que desconhecia. Assuntos banais permitiam sua imaginação aflorar, não somente no cinema, mas nas artes plásticas como um todo e é por isso que suas obras são tão únicas. Cinema-verdade, de verdade. 

Quando Varda começa a discorrer sobre sua velhice e sobre o tempo que passa, ela se olha enquanto um ser vivo, quase como se estivesse se enxergando em um vegetal, ela é uma batata em formato de coração que germina e envelhece ao mesmo tempo. Varda é capturada pelas câmeras, assim como as batatas-coração pelas mãos, acompanhamos o seu envelhecer nas telas do cinema, assim como ela assiste o desenvolvimento dos vegetais que catou. É belo e melancólico que ela tenha dito “Velhice, querida amiga”, ao pentear os seus cabelos brancos, e que tenha ficado conosco por mais 20 anos vivendo pelo cinema.

Ao acaso, fui capturada pela Agnès Varda, desde então nunca mais fui a mesma.


Filme: Os catadores e eu (Les glaneurs et la glaneuse)
Elenco: Agnès Varda, Bodan Litnanski, François Wertheimer
Direção: Agnès Varda
Roteiro: Agnès Varda
Produção: França
Ano: 2000
Gênero: Documentário
Sinopse: A diretora Agnès Varda anda pelo interior da França, afastada das cidades que concentram a riqueza e o luxo, acompanhando pessoas que sobrevivem de restos. Ela se mistura a catadores e coletores que vão até uma feira em busca de sobras de alimentos. Ao mesmo tempo, Agnès conversa com eles, que versam sobre os mais variados assuntos, de política internacional até tragédias pessoais.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Mubi
Streaming: Mubi
Nota: 10

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