Os Desajustados talvez seja um dos maiores desafios textuais com o qual já me deparei. Primeiro, um filme de comédia, segundo um filme de comédia britânico e, terceiro: um filme de comédia britânico charmoso. Tentarei aqui transmitir o significado de cada um dos três elementos tratados nessa abertura.
Vale partir de início pela comédia: é complicada de lidar, merece tanta atenção quanto qualquer outro gênero existente dentre as mais variadas manifestações ficcionais. Da onde surge essa “ignorância” permeável pela história de rebaixar a comédia? Talvez desde a perca dos registros escritos de Aristóteles em sua, provável obra máxima “A Poética”, a comédia sofre um “preconceito” de rebaixamento. Daqui vale uma observação autobiográfica – sempre fui rodeado e admirador de diferentes e variadas manifestações da comédia pela arte, porém nunca a considerei “séria”, sempre a acessando como um “escapismo” do estresse – mas, onde tudo se alterou? O que me convenceu, enfim, escrever sobre um filme do gênero? Não há um aprendizado tão profundo quanto na obra literária “Em Nome da Rosa” (1980) do genial Umberto Eco: o riso é a porta para o absurdo, onde através dele, critica-se o status quo da sociedade. O riso é a porta para compreendermos de um jeito “leve” e ao mesmo tempo “pesado” as mais variadas, contraditórias e complexas relações humanas com todo seu espectro: natureza; sociedade; existência e razão. Abre portas para compreendermos o “outro” e o “si mesmo”. Ela é um espelho, ela reflete o mundo.
Então, o que especificamente, esse filme britânico, considerado um clássico cult, tem a nos dizer sobre nós? Sobre sua narrativa? Sobre seu período? Do que se trata?
É uma jornada de dois amigos, na era que chamamos de “Pós-Hippie”, onde restaram os “Junkies” (termo em inglês, que traduzido ao pé da letra significa drogado), que não vivem mais aquela glória do pensamento social-filosófico do “Paz e Amor”, vivendo a decadência do alcoolismo e do vício. Fica clara essa referência quando grande parte da trilha sonora são músicas diretas do ápice do Rock n Roll hippie, destacando-se claro as icônicas músicas de Jimmy Hendrix. Mas, é uma jornada sem muita glória, sem exageros, não saindo de um ambiente extremamente realista e verossimilhante, quase uma narrativa sem propósito, sem significados ou as famosas lições de encerramento – o que não significa que não tem o que ser obtido dali. Nossa dupla de protagonistas é interpretada – e se diga carregam o filme em sua excelente dinâmica – por Richard E. Grant (Withnail) com sua personalidade arrogante, sarcástica, irônica e cheia de trejeitos e Paul McGann (Marwood) acanhado, ansioso e desconfortável. Aqui já surge aquela dúvida, por que do título Withnail and I? Nosso longa contém vários elementos autobiográficos do diretor Bruce Robison, que era amigo do “Withnail” que em nosso mundo se chamava Vivian MacKerrel, o nome diferente é inspirado em um colega de infância do diretor que além de ter o nome, ainda o considerava a pessoa mais “legal” que conheceu no respectivo período. Muitas das situações que viveu durante três anos junto com o colega Vivian MacKerrel foram adaptadas e sintetizadas no período de três semanas que acompanhamos os protagonistas ao longo do arco narrativo do filme.
Agora vem a nos importar a segunda definição: um filme britânico. O que em sua identidade, se associa a esse humor tão específico deste país que já foi o maior império colonizador do mundo no apogeu do que chamamos de Era da Indústria? É o que permeia pesadamente a maioria de suas comédias, que é a inteligência dos diálogos, no uso de expressões coloquiais e locais da linguagem inglesa, naquilo que se subentende e no absurdo dentro da normalidade, que mesmo se manifestando de maneira específica em cada cultura. Cada um entende bem essas “maluquices” e “subjetividades” cômicas do dia-a-dia, que quando paramos para refletir pensamos: “como que essa porra foi realmente acontecer?”, mas aqui não se utiliza de aparatos exagerados, onomatopeias, aplausos ou o absurdo pelo absurdo, o charme está no diálogo, está na atuação e como a informação é transmitida pela entonação, expressão e ambientação das cenas.
Como destacado em “Trainspotting” (1996) anteriormente comentado por aqui, vale comentar sobre a cena de abertura do longa aqui em questão. O apartamento da dupla está em completa sujeira – nada que um morador de república universitária masculina não tenha vivenciado – e, nosso protagonista Marwood em uma crise de ansiedade total por conta da péssima condição de vida em que se encontra. Withnail “acorda”, mas já pelo claro visual da personagem notamos algo de errado, e Marwood concretiza nossa suspeita atestando que seu colega não dorme já fazem 72 horas. Seguem-se, a partir deste ponto inicial, cenas e mais cenas de tirar bons sorrisos e risadas, graças a inteligência do texto e todo o absurdo extremamente real das situações que as personagens passam. Para se livrar de todo o desespero, ansiedade, sujeira e a falta de dinheiro surge uma ideia: que tal viajar para o interior? Viver as belezas da zona rural inglesa? Assim, Withnail vai até a residência de um tio chamado Monty, interpretado pelo icônico Richard Griffiths – que interpretou a famosa personagem Tio Válter na série de filmes Harry Potter – com o intuito de pedir emprestada a sua casa de campo para concretizarem a ideia de passarem esse tempo de relaxamento na zona rural.
Desde o momento do apartamento até sua conclusão, é quase impossível transcrever em texto a genialidade e a coletânea de momentos incríveis que esse longa carrega, retirando honestas risadas não só com a organicidade da dupla principal – menção honrosa a cena da casa de campo com as protagonistas passando a maior dos receios imaginando que a residência onde estão está sendo invadida por um caçador que encontraram mais cedo –, mas com todo seu elenco coadjuvante: Danny (Ralph Brown) que é o traficante da dupla, com suas características frases herméticas e toda sua vibe de hippie decadente, até mesmo Presuming Ed (Eddie Tagoe) que mesmo sem falar nada consegue nos tirar boas risadas do rosto. Há uma leveza descomprometida que permeia todo nosso longa, mas, ainda não houve a resposta para nossa terceira qualidade: charmoso.
Da onde, então, dentro das diferentes exposições até o momento, se encaixa essa característica?
Porque aqui, diferente de “Trainspotting” (ressalto a importância da leitura do texto para entender a título de comparação que seguiremos nas próximas linhas) que por mais absurda e caricata seja a representação, não sai do sarcasmo trágico, é pesado, é melancólico e é depressivo. Já em Withnail and I, representa-se com perfeição aquilo que chamamos de “cômico-trágico”. As personagens vivem em total estado de decadência, afinal, vivem na beira do desemprego, com extrema dificuldade e quase nenhuma crença de que conseguirão algum papel importante no mundo da atuação. Essa realidade ímpar é da década de 80 na Inglaterra, por mais que a narrativa esteja em 1969, reflete as questões de época do lançamento do longa e que fique claro não fica fechada somente ao ciclo de atores, mas estendendo-se por todo o espectro social, com principal foco nos mineradores de carvão. Withnail e Marwood vivem em reclusão, vivem alcoolizados, vivem longe de qualquer esfera de responsabilidade, que mesmo com toda a sagacidade e inteligência dos argumentos de Withnail e inocência transmitida pelo visual de Marwood, não deixam de transmitir certa tristeza, certa tragédia e incerteza de futuro.
É uma “roupagem” ou “disfarce” a sensação de que não tem propósito ao todo do filme. Nada atinge maior o clímax dessa sensação do que o momento em que o personagem Marwood recebe a oportunidade de ser o personagem principal em um trabalho e, Withnail – pelo incrível talento de atuação de Robert E. Grant através de seu olhar – claramente sente remorso, sente inveja, sente a solidão e o afastamento de uma amizade que lhe é muito querida, apesar de todos os sarcasmos e ironias. Withnail é uma pessoa de talento afundada pelo corpo todo em um buraco sem fim de vícios. A cena final, sozinho, segurando seu guarda-chuva, perdido naquele mundo cinza, chuvoso, que consome almas e sanidades, recita de cabeça – o que Vivian MacKerrel na vida real também fazia – trechos de Shakespeare, em específico Hamlet:
“Ultimamente, mas não sei por que, perdi toda a minha alegria. E, de fato, vai tão fortemente com a minha disposição, que esta bela moldura, a Terra, parece-me um promontório estéril… Este dossel mais excelente, o ar, olhe você, este bravo firmamento suspenso, este majestoso telhado frisado com fogo dourado, ora, não me parece nada além de uma congregação de vapores fétidos e pestilentos! Que trabalho é um homem. Quão nobre em razão! Quão infinito em faculdades! Como um anjo em apreensão! Como um *deus*!
A beleza do mundo, o modelo dos animais! E ainda, para mim, o que é essa quintessência de *poeira*? Homem não me encanta… não, nem mulher também… Nem mulher também”.
Cena: momento final de Withnail and I
Assim… Encerramos nossa definição do que é “um filme de comédia britânico charmoso”.
Filme: Withnail and I (Os Desajustados) Elenco: Richard E. Grant, Paul McGann, Richard Griffiths, Ralph Brown, Michael Elphick, Daragh O’Malley, Michael Wardle, Eddie Tagoe Direção: Bruce Robinson Roteiro: Bruce Robinson Produção: Reino Unido Ano: 1987 Gênero: Comédia Sinopse: Em 1969, dois atores desempregados e toxicômanos se retiram para o campo para umas férias que se revelam desastrosas. Classificação: 16 anos Distribuidor: Handmade Films Streaming: MUBI Nota: 9,5 |