Ao assistir Os Observadores (2024), dirigido por Ishana Night Shyamalan, é inevitável pensar em seu pai, M. Night Shyamalan. Sendo o diretor conhecido por trabalhar com temas fantasiosos enquanto catalisadores dos arcos dramáticos de seus protagonistas, por vezes com reviravoltas, não é de se surpreender que a jovem estreante compartilhe certos traços estilísticos com aquele que foi um dos responsáveis pelo cultivo de sua criatividade. Sendo assim, a escolha de adaptar o livro The Watchers, escrito pelo autor emergente de terror A. M. Shine, parece adequada para a diretora, já que tem como premissa mesclar elementos de horror e fantasia, além de ter uma reviravolta significativa no final. Logo, no que tange o material base, a trama é eficaz, tem boas alegorias e um arco dramático sólido para a protagonista. Contudo, tratando-se da forma fílmica empregada por Ishana, o longa peca principalmente na construção da tensão devido às trapaças escancaradas na decupagem que tiram toda a força de muitas cenas, o que gera a sensação de potencial pouco aproveitado.
Antes de tudo, é pertinente uma breve comparação formal entre os trabalhos dos Shyamalan, para então deixar essa sombra paterna de lado e adentrar no filme em questão. Em primeiro lugar, semelhante aos protagonistas dos filmes de M. Night, Mina é uma personagem que carrega um trauma profundo, daqueles que tornam-se um peso constante na vida de alguém, e que só consegue passar por um processo de cura a partir do embate direto com forças insólitas. Neste caso, Mina claramente não é uma pessoa em perfeita harmonia consigo. Além do fato de que ela vai aos bares à noite usando uma peruca e apresentando-se aos rapazes com um nome falso, ela relembra constantemente do falecimento de sua mãe há quinze anos atrás, e a causa da morte é um mistério por enquanto — lembra do pastor em Sinais (2002) ou do zelador em A Dama na Água (2006)?. No início do filme, Mina, que é funcionária de um pet shop, precisa levar uma ararajuba amarela para um zoológico em outra cidade e perde-se em uma floresta densa e sombria. Antes de anoitecer, abriga-se junto a outras três pessoas, Madeline, Ciara e Daniel, em uma espécie de bunker, pois a idosa Madeline alerta que “Os Observadores”, monstros malignos que o grupo nunca viu com os próprios olhos, estão à espreita. Logo de cara, esse contexto remete ao cenário de A Vila (2004), de Shyamalan pai, em que uma vila pacata está rodeada por uma floresta, também obscura, onde vivem monstros terríveis. Inclusive, até a trilha musical, composta por Abel Korzeniowski, utilizada quando Mina tenta escapar da floresta, com seus violinos pesarosos, remete às peças de James Newton Howard para A Vila, ainda que sem o mesmo impacto.
Pois bem, com a situação-problema estabelecida, atentemo-nos a uma das singularidades da trama: o bunker. Diferente de uma cabana de madeira abandonada, ou um esconderijo sob a terra, este bunker está visível a todos ao redor, bem iluminado por dentro e, o mais intrigante, uma de suas paredes é feita de um vidro grosso que por fora é transparente, mas por dentro é um espelho. Madeline explica que de dia eles podem sair do bunker para caçar, mas precisam estar de volta antes do anoitecer, pois à noite “Os Observadores” precisam vê-los através do vidro, ela diz que eles os deixam viver por entreterem-se dessa forma, observando-os. Ciara demonstra isso dançando para os monstros, em uma cena que ela dança em frente à sua imagem espelhada, sem ver o que está do outro lado, mas ouvindo os “aplausos” dos monstros, como diz Daniel. Assim, uma das alegorias é iniciada, um aceno evidente à espetacularização da vida privada nas redes sociais, como se Ciara dançasse na frente da câmera frontal de seu celular para o prazer daqueles que a veem. Em outro momento, Mina dá umas batidas com seu dedo no vidro e, logo depois, recebe várias batidas dos monstros de volta, como se tocassem na tela de um celular, trocando likes. Por sinal, o grupo chama o bunker de “Poleiro”, e, considerando o fato de que a ararajuba Darwin, carregada em uma gaiola por Mina, estava sendo transportada para um zoológico, ou seja, para ser a nova atração de lá, até que a alegoria desenha-se bem. Além disso, tendo em vista que Mina cria uma persona falsa para que não conheçam seu “verdadeiro eu”, a pessoa traumatizada e presa ao passado, a dinâmica “Casa de Vidro” que os personagens passam no bunker reforça o quão objetificados eles ficam para entreter a “audiência” — uma das poucas distrações que eles têm lá dentro, aliás, é um DVD de um reality show.
Conceitualmente, todas essas alegorias são bem pensadas, apesar de não serem tão sutis, mas funcionam enquanto subtexto de um suspense de sobrevivência — até porque, no fim das contas, nos envolvemos principalmente com a materialidade à nossa frente, com os perigos ao redor, com a ação das personagens. Infelizmente, é justamente nesse quesito que o filme deixa a desejar em diversos momentos. A título de exemplo, no meio do filme, acompanhamos Mina e Madeline do lado de fora do bunker, pois Daniel as trancou do lado de fora devido à sua paranoia. Elas escondem-se em um matagal e aguardam a chegada dos “Observadores”. Finalmente, vislumbramos as figuras que assombram a floresta até então: são altas, esguias, retorcidas, com cabelos afiados, e rosnam um som tenebroso. Elas notam que faltam duas pessoas dentro do bunker e, raivosas, dão meia volta para procurá-las. Imediatamente depois, Mina e Madeline saem correndo até a porta e gritam para que Daniel abra a porta. Convenientemente, os monstros já estão longe demais para alcançá-las após perceberem que elas estão de volta, mas ainda assim retornam e começam a bater no vidro. De repente, Mina percebe que debaixo de um tapete há um alçapão, e, enquanto tentam abri-lo, os monstros parecem ser incapazes de destruir o vidro. No último instante, quando eles finalmente entram no porão, os monstros conseguem invadir o bunker, tarde demais. Este é o exemplo mais esdrúxulo de trapaça narrativa pois a quantidade de conveniências em uma única cena multiplica exponencialmente o grau de inverossimilhança e, consequentemente, de incapacidade de gerar tensão. Envolve a ação descabida de um personagem paranoico, a inaptidão de busca dos monstros, o percurso de uma distância considerável deles para não dar tempo de pegá-las quando retornam ao bunker, gritos de personagens em uma situação em que isso claramente é uma péssima ideia, a súbita descoberta de um alçapão e o clássico “personagens conseguem fugir da ameaça no último segundo”. Uma dessas conveniências é justificável; duas dessas já duplicam o esforço de relevar, mas até dá; agora, fica impossível não se frustrar depois de tamanha série de facilidades narrativas como essas — e este é apenas um dos vários exemplos em que eventos assim acontecem, eles realmente prejudicam a experiência geral. Mesmo assim, pelo menos o plot twist, como boa Shyamalan, altera todo o percurso até então e também resolve o arco dramático da protagonista. Não vou entrar no terreno do spoiler, mas é seguro dizer que a reviravolta levanta o espírito do filme, digamos que, com um embate particular e emocionante entre Mina e uma das criaturas.
Os Observadores leva bem o lado conceitual da história do livro às telas, mas é sabotado por uma decupagem simplória que não faz jus às forças do fantástico presente na obra. Ainda assim, o aspecto emocional da protagonista é capaz de comover, especialmente após a reviravolta. Há um maravilhamento bonito que vem depois disso, uma reverência ao fantástico para compensar os temores retratados no resto do filme. Afinal de contas, como de praxe nas narrativas de M. Night Shyamalan, às vezes, para seguir em frente é preciso passar por uma experiência tão intensa quanto traumas do passado, para nos lembrar que há mais nesta vida do que sofrer por isso. Ishana Night Shyamalan, em sua estreia como diretora, parece querer perpetuar essa mensagem, tão trabalhada pelo pai — resta ver se seus futuros filmes trarão o mesmo primor cinematográfico.
Filme: The Watchers (Os Observadores) Elenco: Dakota Fanning, Georgina Campbell, Olwen Fouéré, Oliver Finnegan, Alistair Brammer, John Lynch, Siobhan Hewlett. Direção: Ishana Night Shyamalan Roteiro: Ishana Night Shyamalan Produção: Estados Unidos Ano: 2024 Gênero: Suspense, Fantasia, Mistério, Terror Sinopse: Quando Mina fica perdida em uma floresta na Irlanda ela acaba encontrando três estranhos que são perseguidos por criaturas misteriosas todas as noites. Classificação: 14 anos Distribuidor: Warner Bros. Streaming: Indisponível Nota: 5,0 |