CRÍTICA – OS OUTROS

CRÍTICA – OS OUTROS

Enquanto a maratona de David Lynch não continua, revisitar outros clássicos nunca faz mal à saúde não é mesmo? Ainda mais quando se trata de um do início do Século XXI que ficou na “boca do povo” durante tanto tempo! Os outros.

– Caso NUNCA TENHA ASSISTIDO ou recebido spoilers do desfecho principal do filme, recomendo que assista antes de ler a crítica, pois o roteiro do longa é totalmente fechado no elemento SURPRESA de sua conclusão. Assistir com nenhuma informação traria a experiência pura e única de ser surpreendido! Ponha sua conta em risco ou dê o play no filme! –

Na cena de abertura já se depara com um grande símbolo gótico: uma mansão vitoriana com aparente abandono em meio a uma neblina silenciosa e perdurante. Um clássico cenário das histórias góticas, em que sussurros, estalos e rangidos permeiam por uma casa com poucos ocupantes, realçando as hastes do imaginário do público e das próprias personagens. Grace Stewart (Nicole Kidman) e seus dois filhos Anne (Alakina Mann) e Nicholas (James Bentley) residem nessa mansão. A mãe recepciona três pessoas que batem à sua porta, alegando estarem em busca de emprego. Bertha (Fionnula Flanagan) é a nova babá e chefe dos outros empregados que no caso são Lydia (Elaine Cassidy) que é a empregada doméstica “faz-tudo” e Sr. Edmund Tuttle (Eric Sykes) com a ocupação de jardineiro.

Enquanto o elenco é apresentado, a personagem da casa (que é outro elemento importante da narrativa) se expõe, cômodo à cômodo, apesar de seus meandros e labirínticos caminhos, com Grace repassando regras para os funcionários. As refeições devem estar dispostas em horários específicos e bem delimitados e não se deve sair de um cômodo sem trancar as portas. Esse detalhe acarreta numa estranheza que é resolvida na mesma situação em que aparece: seus filhos sofrem de uma rara alergia extrema à luz, assim, com as portas trancadas e as cortinas sempre fechadas se garante a segurança das crianças para não se exporem à luz. O contexto histórico do filme parece ser em meios finais da Segunda Guerra Mundial ou um pouco após seu término, pois, Grace também atesta que os nazistas cortaram as luzes, por isso, se acostumaram a usar luz de velas e lampiões.

As crianças vivem na mansão que pode ser chamada de prisão, afinal, nem mesmo no período noturno se vê a mãe permitindo os mesmos de andarem pelas redondezas da propriedade. A mãe dado sua proteção e prováveis paranoias justificadas pelo próprio período histórico em questão e toda perseguição violenta praticada pelos nazistas, também está presa na residência. Algumas informações entre diálogos retornam para a sensação de estranheza: uma negação veemente da provável morte do marido que foi convocado para a guerra e o desaparecimento repentino dos funcionários anteriores que trabalhavam na mansão.

A opção estética da fotografia optando por um inteligente realce da pouca iluminação, promovendo uma ambientação em que as sombras protagonizam sempre os cantos do cenário realça uma atmosfera fantasmagórica, um retoque clássico das histórias tenebrosas e dos contos de assombração. Em relação ao ciclo de estabelecimento do terror e horror, para um melhor entendimento da proposta reflexiva e analítica, será dada uma breve explicação simplória da diferença entre essas duas palavras-conceito.

Terror é o estabelecimento do suspense, daquilo que espreita na tensão, criando uma atmosfera em torno do que não é visto, mas escutado ou rapidamente testemunhado. Havia um fantasma? Existe algo na sombra atrás da porta? De quem são os passos que foram ouvidos no sótão?

Horror é a manifestação desse suspense, é quando a criatura é revelada, a verdade indiscutível da violência se manifesta, o gore grita nas telas. Há um fantasma. Existe um demônio atrás da porta. Era a garota possuída correndo no sótão.

No longa-metragem em questão a um respeito muito bem cadenciado entre ambas palavras-conceito, afinal, iniciam-se com os barulhos, relatos da filha que interagiu com uma terceira criança chamada Victor, seus desenhos sobre a família de intrusos ressaltando a figura de uma velha bruxa, o piano tocando solitariamente, a porta que fecha abruptamente, as cortinas que desaparecem em dado momento. Existem intrusos na residência, porém, nenhum dos outros personagens com exceção da filha que somente relata (nunca é exposto de fato) o que viu e conversou. A mãe fica ensandecida e também se torna vítima dos intrusos ao ponto de não conseguir racionalizar os respectivos eventos, entrando em busca de soluções religiosas – aguardando a vinda do padre que nunca acontece – e posteriormente total negação dos ocorridos.

Sua genialidade reside nos pequenos e poucos momentos de horror que nunca de fato se concretizam a não ser em duas cenas específicas. A garota possuída pela velha e a grande revelação sobre o trio de funcionários que coexistem com o elenco de personagens protagonistas. Com toda a construção bem elaborada dos eventos de terror, esses singelos momentos de horror se prendem ao imaginário e realçam um planejamento bem pensado das ordenação dos eventos sobrenaturais do filme para promover o sentimento em que o filme é participante do gênero: o medo.

No apogeu desesperador da protagonista, dado sua religiosidade intrínseca – católica fervorosa – sai da residência rumo aos portões para ir até a Igreja buscar o padre para uma resolução contra as forças sobrenaturais que se manifestam na mansão. A neblina nunca cessa, não acaba, perdura em sincronismo com a própria realidade miserável das personagens presas nesse pequeno mundo em que residem, afinal, a mansão é sua morada e simultaneamente incorpora uma prisão, incorpora quase um túmulo das quais a liberdade e esperança parecem sufocadas no eterno silêncio.

Grace perdida entre árvores retorcidas engolfadas na neblina encontra seu marido Charles (Christopher Eccleston) moribundo e perdido, dizendo que buscava encontrar o caminho de casa. A atuação de Christopher exala um olhar alienígena, uma sensação de desconexão, pois, mesmo no reencontro e na aparente felicidade de sua esposa, não retorna em nenhuma intensidade o amor que a mesma devota para sua figura. É estranho, mas, é um veterano de guerra que testemunhou muitos dos desesperos e atrocidades de um dos campos de batalhas mais sanguinolentos do Século XX.

Para além das manifestações sobrenaturais dos intrusos, existe toda uma atmosfera misteriosa para entender o que de fato está acontecendo. As crianças – principalmente Anne – deixa subentendido um evento traumático anterior com a mãe. Grace surta em determinado momento – em que a menina é possuída pela velha que relatou anteriormente – e esse episódio é retomado em sussurros que não entendemos. Bertha aparenta saber de acontecimentos anteriores e está munida da explicação para o contexto todo da trama. Os funcionários escondem sepulturas presentes no quintal. O marido tem uma noite de relações com a esposa, porém continua aparentemente perturbado e se ajeita para retornar ao campo de combate, apesar da guerra já ter acabado. O que de fato está em jogo?

Pistas nos são entregues ao longo de todo o longa-metragem tal qual Sexto Sentido (1999) de M. Night Shyamalan. Resta ao público perspicaz junta-las para que o mistério seja resolvido, trabalho que não será feito aqui dado à resguardar a experiência original do público que tem interesse nesse respectivo tipo roteirístico de mistério. E é interessante essa proximidade de datas, pois, Os Outros é o Sexto Sentido invertido, apesar de ambos protagonistas – no caso de Os Outros o elenco todo de personagens – serem fantasmas. A inversão de valores aqui não é o medo dos espíritos, mas sim o medo dos próprios seres vivos. Acompanhamos a narrativa no ponto de vista dos espíritos que veem os seres vivos como invasores da sua residência, um conflito entre os “antigos” moradores residentes no mundo sobrenatural e aqueles presentes no mundo material que tentam transformar a mansão em seu lar. Eis aqui a surpreendente quebra inclusive da clássica de história de mansões possuídas por fantasmas que devem ser exorcizados, afinal, os protagonistas são os fantasmas. É uma genuína e criativa inversão de valores para todo o clichê para quem está familiarizado com o gênero de terror no cinema.

Um dos discursos frequentes ao longo da obra é perceber uma tentativa de desconstrução do imaginário mitológico doutrinário católico. Não é uma “bandeira” pró-espiritismo ou um filme propagandístico dessa vertente, porém, é interessante não haver de fato uma resolução clichê cristã. A própria personagem Bertha ressalta ao dizer para seus companheiros: “Ela (Grace) ainda não entendem que existem muitas questões no além morte”. O que resta é lidar com os intrusos que irão vir e posteriormente se despedir, vivendo junto da memória da própria residência que exalta a história de uma localidade por onde tantas pessoas passaram.

Hoje pode não parecer a ideia mais original do planeta, afinal, a temática dos espíritos foi e é trabalhada das mais variadas formas e contextos, fazendo Os Outros se diluir em um catálogo vasto e muitas vezes preenchido com títulos de não muita qualidade. Na época gerou burburinho, tornando-se um clássico nas locadoras que conseguisse suprir a sensação de perca após a explosão intelectual promovida pelo Sexto Sentido.

E ai… Será que em nossas casas também não somos intrusos de espíritos mais antigos?


Filme: The Others (Os Outros)
Elenco: Nicole Kidman, Alakina Mann, Fionnula Flanagan, James Bentley, Elaine Cassidy, Christopher Eccleston, Eric Sykes
Direção: Alejandro Amenábar
Roteiro: Alejandro Amenábar
Produção: Estados Unidos.
Ano: 2001
Gênero: Drama, Fantasia, Terror
Sinopse: Durante a Segunda Guerra, a devota Grace aguarda com os filhos o retorno do marido dos campos de batalha. Isolados em uma mansão numa ilha deserta, passam a observar estranhos acontecimentos ao seu redor
Distribuidor: Imagem Filmes
Streaming: Prime Video
Nota: 8,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *