CRÍTICA – PARA’Í

CRÍTICA – PARA’Í

Pará caminha pelas ruas de terra da aldeia guarani. Ela atravessa a rua de asfalto e vai até o carro de doces estacionado do outro lado. Não fica claro se comprou alguma coisa. Ato contínuo, segue pelas ruas de terra da aldeia contígua, andando por entre casas de estilos variados, umas mais simples do que outras. A menina, então, encontra seu avô e, juntos, eles entram na casa de reza.

Um começo de filme singelo, sem dúvida, que parece não revelar muita coisa. Mas basta um olhar um pouco mais atento para perceber que há naquele microcosmo apenas esboçado uma sinergia e um senso de comunidade incomuns. Ficamos sabendo também que a aldeia, no Jaraguá, está localizada numa região urbana — uma informação importante para o desenrolar da narrativa. Há indígenas vestindo adereços típicos da cultura guarani e outros tantos vestindo roupas e portando objetos da cultura, digamos, urbana, prevalecendo uma certa harmonia entre uma coisa e outra.

O filme, segundo Vinicius Toro, foi rodado em 2016, e uma versão mais curta dele foi exibida na TV Cultura em 2017. Agora em abril estreia nos cinemas uma versão mais longa, com material inédito, ainda segundo o diretor. Essa distância no tempo (7 anos) não fez “Para’í” envelhecer; ao contrário, o longa-metragem continua atual, semelhante a um bom vinho guardado na adega por vários anos.

A sinergia presente no início do filme e que se estende ao longo dele não é por acaso. O processo de construção do projeto começou já durante as oficinas de cinema que Toro ministrou na aldeia. Uma integração, portanto, que não surgiu de uma hora para outra e que se vê claramente refletida no trabalho com os atores. Mesmo olhando para câmera algumas vezes — o que acho divertido — as crianças do filme atuam muito bem, e o fazem com uma naturalidade que contribui enormemente para envolvimento do espectador com as personagens. Há graça e leveza no trabalho delas e no trabalho dos adultos também.

Gosto muito da predominância dos planos fixos e daqueles que se movimentam pouco. O filme rejeita a pressa, o plano curto, a agitação e a velocidade ensandecida da era TikTok. E permite, assim, olharmos com um pouco mais de atenção para as ações dos personagens, respeitando a dinâmica da vida na aldeia. É o ritmo de quem espera uma planta crescer. É algo extraordinário nos dias de hoje.

A ideia do filme, segundo Toro, é que o espectador urbano tenha um contato sensível com a cultura guarani através dos vários elementos e situações sutis que vão surgindo ao longo de sua narrativa simples e muito poderosa, sem o didatismo costumeiro.

“Para’í” nos mostra uma menina curiosa que transita de modo fluído entre sua própria cultura e a cultura dos juruás (homens brancos). Ao mesmo tempo em que Pará se esforça para plantar (e depois ver brotar) os grãos do milho colorido que encontrou, ela acessa o Google na escola em que estuda e brinca com o celular da amiga. Mas o que a garota realmente deseja é entender mais profundamente a sua própria cultura, o lugar de onde veio, apropriando-se da tradição de seu povo e se tornando um elo na transmissão desse conhecimento precioso, singular, adquirido de modo paciente e respeitoso, tanto na relação com os amigos quanto na relação com os mais velhos.

Fazia tempo que não assistia a um longa-metragem nacional com um roteiro tão bom, tão bem amarrado, dirigido de modo firme e elegante, com um final que explora magistralmente a força do símbolo. “Para’í” é resistência. Vida longa ao filme.


Filme: Para’í
Elenco: Monique Ramos Ara Poty Mattos, Samara Cristina Pará Mirim O. Martim, Lucas Augusto Martim, Regiane Dina de Oliveira Santos, Hortêncio Karai Tataendy, Sônia Barbosa Ara Mirim
Direção: Vinicius Toro
Roteiro: Vinicius Toro
Produção: Brasil
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: Para’í conta a história de Pará, menina guarani que encontra por acaso um milho guarani tradicional, que nunca havia visto e, encantada com a beleza de suas sementes coloridas, busca cultivá-lo. A partir dessa busca ela começa a questionar seu lugar no mundo, quem ela é, por que fala português e não guarani, por que é diferente dos colegas da escola, por que seu pai vai à igreja Cristã, por que moram numa aldeia tão perto da cidade, por que seu povo luta por terra.
Classificação: Livre
Distribuidor: Descoloniza Filmes
Streaming: Não disponível
Nota: 9,0

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